sábado, 2 de fevereiro de 2013

Exposição "Diocese de Aveiro, presente e memória"


O património cultural da Igreja pode ser definido como o acervo de bens de mérito artístico, histórico, paleontológico, arqueológico, etnológico, científico, técnico, documental e bibliográfico; por isso, ele é constituído por valores materiais e imateriais, nos quais se consubstanciam legados de épocas anteriores. O fim específico dos bens culturais da Igreja Católica é o anúncio do Evangelho, o culto divino, a pedagogia da fé, a piedade dos fiéis e a promoção espiritual; por isso, o património da Igreja justifica-se na medida em que ele for ordenado àquele objetivo no exercício da missão da mesma Igreja, como instrumento útil e necessário, ou até indispensável. Tais obras, saídas do talento do homem, tendem assim a exprimir a infinita beleza de Deus e a orientar para o louvor e a glória do mesmo Deus.





Convém que se faça a distinção entre arte religiosa e arte sacra. A diferença baseia-se não tanto nos carateres intrínsecos de ambas e na inspiração de cada uma, mas no destino particular das respetivas obras artísticas. A arte sacra possui intrinsecamente um fim litúrgico, ou seja, é aquela em que o artista, como catequista, pretendeu fomentar a vida de fé religiosa; por tal motivo, tal manifestação há de auxiliar na espiritualidade dos crentes e concorrer na condigna celebração do culto divino. É pois necessário que a arte sacra expresse uma ‘teologia em imagens’. No ambiente das comunidades cristãs, ela, sem arbitrariedades, tende a servir a mensagem evangélica, a transmitir as verdades do dogma cristão e a expressar as virtudes dos santos com a maior fidelidade possível e com sentimentos autenticamente piedosos.
O conjunto de mais de cem peças reunidas nesta exposição testemunha uma história de arte sacra com mais de setecentos anos, que outrossim é a história da catequese na arte e pela arte. A sua escolha obedeceu ao princípio de que todas as paróquias estivessem representadas, desde as faldas das serranias até ao litoral oceânico e desde as terras do Antuã até aos campos bairradinos; por tal razão, não se pretendeu obedecer primariamente a uma razão histórica ou artística, apesar de algumas delas terem sido esculturadas em séculos bem recuados e muitas outras deixarem transparecer beleza e piedade.
Como se verá, as peças aqui patentes permitem demonstrar a vivência cristã nas nossas terras, a qual tem por alicerce a fé em Deus e o amor a Jesus Cristo, constantemente demonstrado pelos seus discípulos, a partir da Virgem Maria. Até podemos concluir que a imagem seiscentista de um cristão de raça negra justifica que, na devoção cultual de então, já não existia a discriminação entre as raças humanas, concretizando-se o ensinamento de S. Paulo (Gál 3, 28): – «Tendo sido batizados em Cristo, revesti-vos de Cristo; já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, ‘nem branco nem preto’, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Jesus Cristo.»
Nesta bela e multiforme coletânea, apreciam-se representações em traços de espiritualidade, de simplicidade e de serenidade, que se submeteram aos cânones românicos, góticos, renascentistas, maneiristas, barrocos, neoclassicistas, revivalistas e modernos. Oxalá que as imagens e as alfaias litúrgicas também aqui sirvam de catequese, como servem nos templos, pois elas recordam alíneas de doutrina cristã e de vivência evangélica.
Na primeira parte – ‘Do Mistério à sua Epifania’ – começa-se pela representação da Santíssima Trindade que lembra o Mistério de Deus uno e trino; segue-se a figuração dos anjos, sobretudo a do arcanjo S. Miguel que, na vitória, é protótipo na luta contra o mal. O Mistério divino foi finalmente revelado em Cristo e por Cristo. Contempla-se então o desvelo materno de Santa Ana na educação de Maria, sua filha; o humilde nascimento de Jesus Cristo na gruta de Belém; a adoração dos magos gentios ao Menino do presépio; a Sagrada Família de Nazaré em vivência de amor; o penitente S. João Batista a convidar à conversão de vida; a Virgem Maria com Jesus nos braços, quase a aconselhar, como em Caná da Galileia, - ‘Fazei tudo o que o meu Filho vos disser’; Cristo na flagelação e na cruz a demonstrar que não há amor sem sacrifício; o Senhor ressuscitado a apontar a glorificação do homem no Além de Deus.
Na segunda parte – ‘O Mistério feito Memorial’ – nota-se que o Mistério de Deus, concretizado amorosamente em Jesus Cristo, se torna perene na vida da Igreja pela Eucaristia. As portas dos sacrários e os vários cibórios e custódias em prata estimulam à homenagem e à adoração a Cristo, permanente e vivo no Santíssimo Sacramento, que é estímulo na esperança da vinda do Senhor. Uma das navetas do incenso, cinzelada nos finais do século XV, também fala do encontro de culturas e povos, liderado pelos portugueses.
Na terceira parte – ‘O Imanente elevado ao Mistério’ – as imagens iconográficas representam tantos cristãos e tantas cristãs – homens e mulheres, jovens, adolescentes e crianças, bispos, sacerdotes e leigos – que viveram singularmente a fé em Deus e em Cristo, e muitos por ela foram sacrificados e mortos. Quase no final da exposição, encontra-se a pequena escultura barrista de S. Jerónimo a ler a Bíblia e a refletir nos seus textos; ela questiona se a palavra de Deus é o alimento dos crentes, mesmo através desta mostra. O próprio sítio onde nos encontramos – a moradia da princesa Santa Joana – sugere que o caminho da felicidade é a coerência e a persistência na luta pela verdade na caridade.
E até pode acontecer que o olhar do visitante perscrute o invisível em frente de uma simples imagem de Cristo; parecerá mesmo que Ele esteja a olhar para o íntimo de quem a admira. Num certo dia, perante uma formosa estatueta, talhada em madeira, ouvi o sussurro comovido de um meu amigo, que se confessava ateu: - «Ó Cristo, eu existo nos teus olhos!... Tu olhas para a minha consciência!...» Dialogando com as imagens, as peças e as alfaias, faz-se memória no presente e contempla-se o mistério na arte e pela arte.

João Gonçalves Gaspar

Texto proferido na abertura da exposição “Diocese de Aveiro, presente e memória”, no Museu de Aveiro, no dia 20 de janeiro

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