O património cultural da Igreja pode ser definido como o
acervo de bens de mérito artístico, histórico, paleontológico, arqueológico,
etnológico, científico, técnico, documental e bibliográfico; por isso, ele é
constituído por valores materiais e imateriais, nos quais se consubstanciam
legados de épocas anteriores. O fim específico dos bens culturais da Igreja
Católica é o anúncio do Evangelho, o culto divino, a pedagogia da fé, a piedade
dos fiéis e a promoção espiritual; por isso, o património da Igreja
justifica-se na medida em que ele for ordenado àquele objetivo no exercício da
missão da mesma Igreja, como instrumento útil e necessário, ou até
indispensável. Tais obras, saídas do talento do homem, tendem assim a exprimir
a infinita beleza de Deus e a orientar para o louvor e a glória do mesmo Deus.
Convém que se faça a distinção entre arte religiosa e arte
sacra. A diferença baseia-se não tanto nos carateres intrínsecos de ambas e na
inspiração de cada uma, mas no destino particular das respetivas obras
artísticas. A arte sacra possui intrinsecamente um fim litúrgico, ou seja, é
aquela em que o artista, como catequista, pretendeu fomentar a vida de fé
religiosa; por tal motivo, tal manifestação há de auxiliar na espiritualidade
dos crentes e concorrer na condigna celebração do culto divino. É pois
necessário que a arte sacra expresse uma ‘teologia em imagens’. No ambiente das
comunidades cristãs, ela, sem arbitrariedades, tende a servir a mensagem evangélica,
a transmitir as verdades do dogma cristão e a expressar as virtudes dos santos
com a maior fidelidade possível e com sentimentos autenticamente piedosos.
O conjunto de mais de cem peças reunidas nesta exposição
testemunha uma história de arte sacra com mais de setecentos anos, que
outrossim é a história da catequese na arte e pela arte. A sua escolha obedeceu
ao princípio de que todas as paróquias estivessem representadas, desde as
faldas das serranias até ao litoral oceânico e desde as terras do Antuã até aos
campos bairradinos; por tal razão, não se pretendeu obedecer primariamente a
uma razão histórica ou artística, apesar de algumas delas terem sido
esculturadas em séculos bem recuados e muitas outras deixarem transparecer
beleza e piedade.
Como se verá, as peças aqui patentes permitem demonstrar a
vivência cristã nas nossas terras, a qual tem por alicerce a fé em Deus e o
amor a Jesus Cristo, constantemente demonstrado pelos seus discípulos, a partir
da Virgem Maria. Até podemos concluir que a imagem seiscentista de um cristão
de raça negra justifica que, na devoção cultual de então, já não existia a
discriminação entre as raças humanas, concretizando-se o ensinamento de S.
Paulo (Gál 3, 28): – «Tendo sido batizados em Cristo, revesti-vos de Cristo; já
não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, ‘nem branco nem preto’, nem
homem nem mulher, pois todos vós sois um em Jesus Cristo.»
Nesta bela e multiforme coletânea, apreciam-se
representações em traços de espiritualidade, de simplicidade e de serenidade,
que se submeteram aos cânones românicos, góticos, renascentistas, maneiristas,
barrocos, neoclassicistas, revivalistas e modernos. Oxalá que as imagens e as
alfaias litúrgicas também aqui sirvam de catequese, como servem nos templos,
pois elas recordam alíneas de doutrina cristã e de vivência evangélica.
Na primeira parte – ‘Do Mistério à sua Epifania’ – começa-se
pela representação da Santíssima Trindade que lembra o Mistério de Deus uno e
trino; segue-se a figuração dos anjos, sobretudo a do arcanjo S. Miguel que, na
vitória, é protótipo na luta contra o mal. O Mistério divino foi finalmente
revelado em Cristo e por Cristo. Contempla-se então o desvelo materno de Santa
Ana na educação de Maria, sua filha; o humilde nascimento de Jesus Cristo na gruta
de Belém; a adoração dos magos gentios ao Menino do presépio; a Sagrada Família
de Nazaré em vivência de amor; o penitente S. João Batista a convidar à
conversão de vida; a Virgem Maria com Jesus nos braços, quase a aconselhar,
como em Caná da Galileia, - ‘Fazei tudo o que o meu Filho vos disser’; Cristo
na flagelação e na cruz a demonstrar que não há amor sem sacrifício; o Senhor
ressuscitado a apontar a glorificação do homem no Além de Deus.
Na segunda parte – ‘O Mistério feito Memorial’ – nota-se que
o Mistério de Deus, concretizado amorosamente em Jesus Cristo, se torna perene
na vida da Igreja pela Eucaristia. As portas dos sacrários e os vários cibórios
e custódias em prata estimulam à homenagem e à adoração a Cristo, permanente e
vivo no Santíssimo Sacramento, que é estímulo na esperança da vinda do Senhor.
Uma das navetas do incenso, cinzelada nos finais do século XV, também fala do
encontro de culturas e povos, liderado pelos portugueses.
Na terceira parte – ‘O Imanente elevado ao Mistério’ – as
imagens iconográficas representam tantos cristãos e tantas cristãs – homens e
mulheres, jovens, adolescentes e crianças, bispos, sacerdotes e leigos – que
viveram singularmente a fé em Deus e em Cristo, e muitos por ela foram
sacrificados e mortos. Quase no final da exposição, encontra-se a pequena
escultura barrista de S. Jerónimo a ler a Bíblia e a refletir nos seus textos;
ela questiona se a palavra de Deus é o alimento dos crentes, mesmo através
desta mostra. O próprio sítio onde nos encontramos – a moradia da princesa
Santa Joana – sugere que o caminho da felicidade é a coerência e a persistência
na luta pela verdade na caridade.
E até pode acontecer que o olhar do visitante perscrute o
invisível em frente de uma simples imagem de Cristo; parecerá mesmo que Ele
esteja a olhar para o íntimo de quem a admira. Num certo dia, perante uma
formosa estatueta, talhada em madeira, ouvi o sussurro comovido de um meu
amigo, que se confessava ateu: - «Ó Cristo, eu existo nos teus olhos!... Tu
olhas para a minha consciência!...» Dialogando com as imagens, as peças e as
alfaias, faz-se memória no presente e contempla-se o mistério na arte e pela
arte.
João Gonçalves Gaspar
Texto proferido na abertura da exposição “Diocese de Aveiro,
presente e memória”, no Museu de Aveiro, no dia 20 de janeiro
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