Falar de férias nos dias de hoje, sobretudo para quem não
tem emprego ou vive de ordenados baixos e incertos, pode parecer ofensivo, mas
não é essa a nossa intenção. O que se pretende é sugerir a todos os que puderem
e quiserem uma peregrinação ao Santuário de Santa Maria de Vagos, localizado
numa zona aprazível, durante um domingo ou mais. Para o nosso povo, esta
peregrinação poderá revestir-se de uma visita às raízes gafanhoas, com matriz
especial nas terras vaguenses.
Ali, entre o arvoredo abençoado pela Senhora de Vagos, ao
longo de tantos séculos, será possível confraternizar em família ou em grupos
mais alargados, “conversar” com Nossa Senhora o tempo que desejarem, petiscar
uma merenda previamente preparada sem grandes gastos, registar a iniciativa em
espontâneas fotos, lembrar tradições de que andamos, talvez, um pouco
afastados. Depois, o regresso mais desanuviados do stresse dos nossos quotidianos.
Para ajudar, deixo aqui umas notas.
Das Lendas
Diz o padre Domingos Rebelo dos Santos, antigo prior da
Gafanha da Nazaré, no seu livro “O Culto a Maria na Diocese de Aveiro”, que a
história de Nossa Senhora de Vagos está ligada ao mar. «Segundo a tradição, a
imagem primitiva (dos finais do século XII ou princípios do século XIII) veio
de França. Um navio deu à costa onde se despedaçara, e o capitão, na operação
de salvamento, conseguiu trazer para terra uma imagem de Nossa Senhora da
Conceição, que o acompanhava. Escondendo o seu tesouro, foi junto da população
próxima, Esgueira, pedir ao pároco que lhe desse um lugar condigno na sua
igreja.»
Depois, acrescenta a lenda, perdeu-se o rasto da imagem…
acabando por não ir para Esgueira.
Da lenda, ainda se sabe que a D. Sancho I, estando em Viseu,
«lhe aparecera a Senhora em sonhos e lhe ordenara que fosse a determinado lugar
onde acharia a sua imagem, e que no mesmo lugar lhe edificasse uma capela…
«O rei terá vindo sem guia e, com toda a facilidade, terá
encontrado a imagem como a vira em sonho. Mandou construir a capela e
juntamente uma torre para defesa dos que assistissem à Senhora.»
Da História
Certo é que, «antes de 18 de Agosto de 1200 a capela estava
construída, pois nessa data o rei D. Sancho I doou-a ao Mosteiro de S. Salvador
de Grijó, dos Cónegos Regulares de Santo Agostinho, conforme documento coevo».
A construção do Santuário data do século XVI, mas o aspeto
global, atual, vem de remodelações efetuadas ao longo do século XIX e XX. A
torre sineira foi construída em 1960. A imagem de Santa Maria de Vagos, de
calcário, é do século XIV.
Outras obras continuaram e hão de continuar, porque as
peregrinações se mantêm vivas, englobando sempre grande número de fiéis, um
pouco de todo o lado.
A Senhora de Vagos, como é hábito evocar a Mãe de Deus no
seu santuário em terras vaguenses, tem sido conhecida por outras designações,
através dos séculos e conforme a evolução doutrinária e litúrgica.
Lembra o padre Manuel António Carvalhais, no seu livro
“Santa Maria de Vagos”, que «todos os documentos escritos, desde Abril de 1190
a 22 de Fevereiro de 1505, registaram invariavelmente que nesta ermida ou
igreja é venerada SANTA MARIA DE Vagos». Contudo, ao longo dos tempos,
tornou-se conhecida por Nossa Senhora de Vagos, Nossa Senhora da Conceição,
Nossa Senhora do Bodo e, até, Nossa Senhora das Cerejas. Estas duas últimas
designações prendem-se, naturalmente, com razões especiais, a saber:
1 — Nossa Senhora do Bodo, numa clara alusão ao
«antiquíssimo costume sustentado pelos peregrinos de Cantanhede de contemplar
cada pobre que participa na festa, com quase meio quilo de carne de vaca
cozida, pão e meio quartilho de vinho», como refere o padre Carvalhais.
2 — Nossa Senhora das Cerejas, por ser esse o fruto mais
apetecido e mais procurado na festa, que se celebra na segunda-feira a seguir
ao domingo de Pentecostes. Trata-se, por isso, de uma festa móvel, dependente
da celebração da Páscoa (Domingo a seguir à Lua Cheia, depois de 21 de Março —
Equinócio da Primavera —, o que dá um domingo entre 22 de Março e 25 de Abril).
Das Peregrinações
Tanto quanto se sabe, os peregrinos de todos os dias vêm,
sobretudo, das freguesias do concelho de Vagos. E depois dos concelhos
vizinhos, nomeadamente de Ílhavo, Mira e Cantanhede.
Os de Ílhavo, em especial das Gafanhas, pela ligação
ancestral a Vagos e à Senhora de Vagos. Curiosamente, ou talvez não, as
Gafanhas assumiram Nossa Senhora como sua padroeira, como é sobejamente sabido,
com diversas denominações: Nazaré, Encarnação, Carmo e Boa Hora. O padre
Rezende diz, na “Monografia da Gafanha”, que «o povo da Gafanha, desde épocas
remotas, vai em novena à Senhora de Vagos», como a outros santuários, aliás. E
os menos jovens ainda recordam essas novenas e a atração que a peregrinação
anual despertava. A serenidade do lugar, amplo e convidativo, com a bênção da
Mãe de Deus ali instituída há séculos, será motivo para tal predileção dos
devotos.
Menção especial merece o povo de Cantanhede. O padre
Carvalhais sublinha que, «atualmente, na segunda-feira imediata à Solenidade do
Espírito Santo, cerca de duas centenas de pessoas mantêm ainda a tradição mais
funda de percorrer a pé os trinta quilómetros que separam Cantanhede de Vagos,
por um itinerário distinto do dos seus antepassados». Outros se vão juntando
pelo caminho ou se dirigem para o santuário da Senhora de Vagos. Todos depois
participam na festa litúrgica. E adianta o autor do livro “Santa Maria de
Vagos”: «À tarde, após a recitação do Terço no recinto do Santuário, o pároco
procede à bênção do Bodo que consiste exclusivamente na entrega de pães de
trigo, confecionados em casa dos ofertantes ou em padarias locais, repartidos
por cada romeiro cantanhedense em número igual ao das pessoas da sua família».
Entre outras razões, da ordem da fé de cada um e de uma comunidade, aponta-se o
agradecimento do povo de Cantanhede à Senhora de Vagos pelo benefício de
«alcançar água no tempo em que não chovera sete anos», sendo esta «a antiguidade
e privilégio que aqui é mais memorável».
Fernando Martins
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