segunda-feira, 18 de maio de 2015

O Linguajar dos Gafanhões


Desde que me envolvi no  mundo do ciberespaço, tenho mantido a preocupação de informar os meus leitores em geral e os gafanhões em particular sobre marcas da nossa identidade como povo que foi capaz de desbravar dunas inférteis, transformando-as em terras produtivas. 
Eu sei, todos sabemos, que a velocidade da história não dá azo a grandes preocupações sobre o nosso passado, tanto mais que o presente nos envolve e o futuro está aí apressado a convidar-nos à corrida para se atingirem metas impostas pelo progresso. 
Aqui ficam, pois, algumas considerações sobre os nossos antepassados, na esperança de que todos aprendam a concatenar os fios da história.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Padre João Gonçalves:

“O recluso espera sempre 
que a comunidade lhe perdoe”



“O recluso espera sempre que a comunidade lhe perdoe e precisa de se sentir perdoado, para reiniciar nova vida”, sublinhou ao SOLIDARIEDADE o padre João Gonçalves, Coordenador Nacional da Pastoral das Prisões. E na cadeia, espera fundamentalmente que o capelão e os visitadores “o escutem e o respeitem como pessoa”, mas também que “lhe transmitam o sentido da esperança”, ajudando-o a reconciliar-se consigo mesmo e com os outros e dando-lhes, ao mesmo tempo, “tranquilidade e paz”, frisou.

O padre João Gonçalves, pároco da Glória (Sé de Aveiro), tem um longo e rico currículo como capelão do Estabelecimento Prisional Regional de Aveiro, com cerca de 30 anos de serviço. Há pouco mais de um ano, foi nomeado Coordenador Nacional da Pastoral das Prisões pelo ministro da Justiça, mediante proposta da Conferência Episcopal Portuguesa. Com plena consciência das tarefas enormes que o esperam, sabe que tudo será mais fácil se a sociedade der uma ajuda, tanto na prevenção da criminalidade, como na reinserção dos ex-reclusos. 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Movimento de Schoenstatt

Texto de Isabel Tavares no jornal I de hoje, 17 de fevereiro...

...Da  teoria à prática, com Jesus na ordem do dia...


Marcos e Raquel, casados, Rita, a aguardar a decisão final sobre a anulação de um casamento, e João Pedro, a terminar a faculdade. Mingas, a representante da juventude feminina, não pôde, à última hora, estar presente. Só leigos e nenhum sacerdote, por incompatibilidade de horários. Mas, por telefone, o padre José Melo, coordenador das actividades do Movimento de Schoenstatt, viria a explicar que estava muito bem assim, porque "estrutura não é piramidal, é federativa".
E depressa se percebe que, sem uma hierarquia vincada, este tipo de estrutura é uma das marcas-d'água da instituição, um dos movimentos católicos mais elitistas e por muitos considerado ultra-conservador. Riem-se os quatro quando pergunto se estão de acordo e, à laia de brincadeira, lhes peço os apelidos: Frescata, Fontoura e Duarte. A intermediária do encontro é Rocha e Melo. Coincidência. Acontece que o santuário de Lisboa, à volta do qual se realizam todas as actividades, foi construído no Restelo, uma zona nobre.
Muito mais a sério, explicam que para se construir um santuário não basta ter dinheiro, é preciso haver vida. E, quando uma comunidade sente que está preparada, então sim, ergue um altar. A ideia é que é Nossa Senhora quem escolhe onde e quando. O Santuário do Restelo foi erigido em 1974 e os pais de Marcos foram membros fundadores. Mas há mais três: em Braga, Aveiro e no Porto, por acaso no Canidelo, na margem mais pobre do rio Douro.
"Há uma ideia errada sobre o movimento", dizem. E João Pedro, que está na juventude masculina, é o primeiro a concordar e a desmistificar. Já conhecia Schoenstatt, pelos amigos e pela irmã. "Via-os num grupo de vida, muito felizes, e não percebia bem. Aos 18 anos decidi dar uma hipótese e experimentar." Até hoje. Mas não o fez antes porque "tinha um preconceito, que muita gente tem. Achava que era um movimento muito fechado, pouco acolhedor. E é tudo ao contrário", conta. "Nem é preciso pertencer a um dos ramos [ver caixa], basta vir a uma missa para perceber isso."
E foi este acolhimento que atraiu Rita, a representante do grupo das mães. Ao contrário de João Pedro, que está "tão bem aqui" que não quer "experimentar outros movimentos", Rita já passou por diversas experiências, dos Jesuítas ao Comunhão e Libertação. Não só por ser mais velha, mas porque tem quatro filhos, entre os 16 e os 24 anos, e cada um escolheu o seu caminho, todos católicos.
"Tinha influências mas nunca me vinculei a nenhum movimento. Casei, tive filhos e sempre gostei de conhecer as várias possibilidades, mas nunca os empurrei para lado nenhum." Um dia uma amiga desafiou-a para a peregrinação a Fátima, que Schoenstatt realiza todos os anos, e foi. "Inscrevi-me sem dizer se tinha preferência por algum grupo e fiquei num em que não conhecia quase ninguém", lembra. "Mas as pessoas interessam-se genuinamente pelo outro, sobretudo se estiver sozinho." Pouco depois formava-se o grupo de mães. "Schoenstatt é um movimento de liberdade, interior e exterior."
Marcos, baptizado no santuário aos 15 dias, explica: "A ideia é cada um encontrar o seu espaço de crescimento mais profundo. Há lugar para todos." E esta dimensão é importante, ter espaço para acolher. "Os grupos nascem espontaneamente pela necessidade de receber uma pessoa concreta que encontra em Schoenstatt o seu caminho", diz. Depois cada grupo cria vínculos e uma unidade que o ajuda a crescer.
Marcos é convicto nas suas crenças, tanto que pouco dias depois de ter pedido Raquel em namoro já lá vão perto de dez anos, ela estava no movimento, a ajudá-lo a organizar a peregrinação a Fátima. Hoje já fazem os dois parte do grupo das famílias.
"Em Fátima, por exemplo, não há um santuário, o que pode parecer estranho, porque o nosso carisma é mariano", afirma Raquel. Para logo concluir que é assim "porque não há um grupo de pessoas que gere vida. E é na medida em que há vida que as coisas acontecem".
E é também Raquel quem responde, enquanto embala o carrinho da pequena Madalena, à acusação de que movimentos como Schoenstatt estão a roubar fiéis e vocação à igreja diocesana. "Queremos ser vistos como fonte de integração. Não podemos ver estes movimentos como algo que tira, mas como algo que acrescenta."
Rita acrescenta que é bom olhar para a Igreja e ver uma quantidade de leigos com um papel tão activo. É verdade que há padres que se queixam que lhes estão a roubar fiéis, mas se calhar "nas paróquias não são acolhidos assim". E logo acrescenta que o movimento é um extra no crescimento espiritual de cada um. Ela própria está a formar na paróquia de Santa Maria de Belém um grupo de visitas a reclusos, "porque o chamamento foi lá".
João Pedro sabe que esta crítica é real. Na comunidade dos Olivais, um padre chegou a perguntar-lhe o que é que a diocese poderia fazer para imitar os movimentos e cativar mais jovens. Mas não está de acordo com a condenação. "Penso que se não fossem os movimentos, muitas das vocações que existem não seriam descobertas. Por exemplo, os padres de Schoenstatt poderiam nunca ser padres por não sentirem o chamamento ou os fiéis poderiam nem sequer frequentar missa nenhuma".
De facto, a Igreja diocesana diz que está a envelhecer e o Movimento de Schoenstatt está cheio de gente nova. "Talvez não tenham gerado vida necessária para cativar as pessoas. É a Igreja, no seu seio, que tem de perceber o que perdeu em dado momento que deixou de atrair as pessoas", remata Raquel.

P&R

"São os diversos caminhos que agregam a Igreja"

Como aplica o carisma do movimento à Igreja de hoje?
Todos são chamados a participar. A vida da Igreja tem de ser cada vez mais assumida pelos leigos. Antes os leigos eram mais passivos e os padres é que eram activos. O que é necessário é que cada um tenha o desejo íntimo de construir na sua vida um caminho de santidade, que aqui é apoiado em Nossa Senhora. Cada um deve encontrar o seu carisma, são maneiras diferentes de estar, mas o mesmo objectivo. Mas temos muitas pontes com o patriarcado, o trabalho que fazemos não é um substituto, é complementar.
O proselitismo de Schoenstatt disputa território com a Igreja?
A riqueza da Igreja é a diversidade. Muitos vêm à missa aqui, mas a maioria vai à sua paróquia. Mas muitos encontram aqui o seu carisma. A missão é contribuir para a diocese, para a Igreja como um todo. São diversos os caminhos que agregam a Igreja. Faz parte da nossa missão, como membros do movimento, estar dentro da Igreja, na sua estrutura, e não ser um grupinho à parte.
Como vivem os escândalos da Igreja? É importante perceber que também dentro da Igreja há um caminho a fazer e que existem coisas que não são coerentes, que têm de ser trabalhadas e purificadas, porque somos humanos. Dentro da instituição que formamos também há pecadores. A noção da Igreja terrena, muito humana, é importantíssima.
O que pensa do projecto de reforma do Papa Francisco?
A reforma era tão necessária que é um desejo profundo e quase transversal à Igreja. E depois esta porta de renovação transformadora que o Papa veio trazer e todas as linhas que estão a ser traçadas vêm muito ter com aquilo que é a nossa forma de estar. É uma fonte de esperança.

MANUAL DE INSTRUÇÕES

HISTORIA

No dia 18 de Outubro de 1914, o padre José Kentenich propôs a um grupo de jovens consagrarem-se a Maria. Estabeleceram-se numa pequena capela abandonada, transformando-a num lugar de graças e de peregrinações, e comprometeram-se a oferecer a Maria uma intensa vida de oração e o esforço por viver a santidade na vida diária. Schoenstatt [lugar bonito] é um lugar em Vallendar, na Alemanha, e é lá que está o santuário original.

OS LEIGOS

Existem diversos ramos ou ligas para desenvolver vocações específicas no compromisso apostólico:
Famílias;
Juventude, dividida em juventude masculina (Cruzados, Pioneiros e Universitários) e juventude feminina (Apóstolas de Maria, Aliadas e Universitárias);
Mulheres, onde estão, por exemplo, as mães
Homens

VIDA CONSAGRADA

Os Institutos são parte motriz e asseguram a vitalidade interior e a projecção apostólica. Alguns membros destas comunidades têm como tarefa central o serviço directo a Schoenstatt. Denominam-se Institutos Seculares e têm uma característica própria: vivem segundo os conselhos evangélicos, mas sem votos (por esse motivo, canonicamente, não são integradas na comunidades religiosas). O vínculo jurídico estabelece-se através de uma "consagração - contrato". Comunidades de vida Consagrada:
Instituto das Irmãs de Maria de Schoenstatt (1926)
Instituto dos Irmãos de Maria (1942)
Instituto Nossa Senhora de Schoenstatt (1946)
O Instituto de Famílias de Schoenstatt espera reconhecimento pelo direito canónico. O Instituto dos Irmãos de Maria é de direito diocesano, os outros de direito pontifício

SACERDOTES

O Instituto Secular dos padres de Schoenstatt foi fundado para ser parte central e motriz da obra de Schoenstatt. Nesse sentido, o serviço permanente ao movimento é uma referência para a sua missão. É uma comunidade de direito pontifício, tem também direito próprio de incardinação. Os sacerdotes diocesanos também fazem parte da família de Schoenstatt, unidos pela sua espiritualidade e por uma vivência comunitária. Estão plenamente inseridos nas suas dioceses e encontram no carisma de Schoenstatt uma ajuda para a sua santidade. Os diversos grupos e comunidades de padres diocesanos em Schoenstatt, ou mesmo individualmente, constituem-se segundo o grau de envolvimento e compromisso comunitário, ascético e apostólico (no sentido de Schoenstatt). Comunidades de sacerdotes:

Instituto Secular dos Sacerdotes Diocesanos de Schoenstatt (1945)
Instituto Secular dos Padres de Schoenstatt (1965)
União Apostólica dos Sacerdotes Diocesanos de Schoenstatt
Liga dos Sacerdotes Diocesanos de Schoenstatt (1966)

OS HERÓIS

Max Brunner, que teve um papel de liderança, especialmente na secção de missões. Hans Warmer, membro fundador da Congregação Mariana. José Engling, membro fundador: o seu processo de beatificação decorre na diocese de Treves, na Alemanha. Gertraud von Bullion, a primeira mulher a ingressar no movimento, co- -fundadora da coluna feminina. Fritz Kúhr, formado em Direito e Economia, estudou, simultaneamente, Teologia, tornou-se o primeiro noviço do Instituto de Famílias de Schoenstatt. Franz Reinisch, austríaco, foi o único presbítero católico executado no Terceiro Reich por se ter recusado a jurar bandeira a Hitler. Carlos Leisnerner, o primeiro membro do movimento a ser beatificado, em 1993. Pe. Albert Eise, a quinta cruz negra no santuário original, pertenceu aos congregados e à geração fundadora da obra. Irmã M. Emilie Engel, participou na fundação do Instituto das Irmãs de Maria de Schoenstatt e foi mestra de noviças. Mário Hiriart, nasceu em Santiago, no Chile, e ingressou no movimento como membro da Juventude Masculina de Schoenstatt. Bárbara Kast, membro. João Luiz Pozzobon, ordenado diácono permanente

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quinta-feira, 3 de julho de 2014

SANTA MARIA DE VAGOS



Falar de férias nos dias de hoje, sobretudo para quem não tem emprego ou vive de ordenados baixos e incertos, pode parecer ofensivo, mas não é essa a nossa intenção. O que se pretende é sugerir a todos os que puderem e quiserem uma peregrinação ao Santuário de Santa Maria de Vagos, localizado numa zona aprazível, durante um domingo ou mais. Para o nosso povo, esta peregrinação poderá revestir-se de uma visita às raízes gafanhoas, com matriz especial nas terras vaguenses.
Ali, entre o arvoredo abençoado pela Senhora de Vagos, ao longo de tantos séculos, será possível confraternizar em família ou em grupos mais alargados, “conversar” com Nossa Senhora o tempo que desejarem, petiscar uma merenda previamente preparada sem grandes gastos, registar a iniciativa em espontâneas fotos, lembrar tradições de que andamos, talvez, um pouco afastados. Depois, o regresso mais desanuviados do stresse dos nossos quotidianos. Para ajudar, deixo aqui umas notas.


Das Lendas

Diz o padre Domingos Rebelo dos Santos, antigo prior da Gafanha da Nazaré, no seu livro “O Culto a Maria na Diocese de Aveiro”, que a história de Nossa Senhora de Vagos está ligada ao mar. «Segundo a tradição, a imagem primitiva (dos finais do século XII ou princípios do século XIII) veio de França. Um navio deu à costa onde se despedaçara, e o capitão, na operação de salvamento, conseguiu trazer para terra uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, que o acompanhava. Escondendo o seu tesouro, foi junto da população próxima, Esgueira, pedir ao pároco que lhe desse um lugar condigno na sua igreja.»
Depois, acrescenta a lenda, perdeu-se o rasto da imagem… acabando por não ir para Esgueira.
Da lenda, ainda se sabe que a D. Sancho I, estando em Viseu, «lhe aparecera a Senhora em sonhos e lhe ordenara que fosse a determinado lugar onde acharia a sua imagem, e que no mesmo lugar lhe edificasse uma capela…
«O rei terá vindo sem guia e, com toda a facilidade, terá encontrado a imagem como a vira em sonho. Mandou construir a capela e juntamente uma torre para defesa dos que assistissem à Senhora.»


Da História

Certo é que, «antes de 18 de Agosto de 1200 a capela estava construída, pois nessa data o rei D. Sancho I doou-a ao Mosteiro de S. Salvador de Grijó, dos Cónegos Regulares de Santo Agostinho, conforme documento coevo».
A construção do Santuário data do século XVI, mas o aspeto global, atual, vem de remodelações efetuadas ao longo do século XIX e XX. A torre sineira foi construída em 1960. A imagem de Santa Maria de Vagos, de calcário, é do século XIV.
Outras obras continuaram e hão de continuar, porque as peregrinações se mantêm vivas, englobando sempre grande número de fiéis, um pouco de todo o lado.
A Senhora de Vagos, como é hábito evocar a Mãe de Deus no seu santuário em terras vaguenses, tem sido conhecida por outras designações, através dos séculos e conforme a evolução doutrinária e litúrgica.
Lembra o padre Manuel António Carvalhais, no seu livro “Santa Maria de Vagos”, que «todos os documentos escritos, desde Abril de 1190 a 22 de Fevereiro de 1505, registaram invariavelmente que nesta ermida ou igreja é venerada SANTA MARIA DE Vagos». Contudo, ao longo dos tempos, tornou-se conhecida por Nossa Senhora de Vagos, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora do Bodo e, até, Nossa Senhora das Cerejas. Estas duas últimas designações prendem-se, naturalmente, com razões especiais, a saber:
1 — Nossa Senhora do Bodo, numa clara alusão ao «antiquíssimo costume sustentado pelos peregrinos de Cantanhede de contemplar cada pobre que participa na festa, com quase meio quilo de carne de vaca cozida, pão e meio quartilho de vinho», como refere o padre Carvalhais.
2 — Nossa Senhora das Cerejas, por ser esse o fruto mais apetecido e mais procurado na festa, que se celebra na segunda-feira a seguir ao domingo de Pentecostes. Trata-se, por isso, de uma festa móvel, dependente da celebração da Páscoa (Domingo a seguir à Lua Cheia, depois de 21 de Março — Equinócio da Primavera —, o que dá um domingo entre 22 de Março e 25 de Abril).

Das Peregrinações

Tanto quanto se sabe, os peregrinos de todos os dias vêm, sobretudo, das freguesias do concelho de Vagos. E depois dos concelhos vizinhos, nomeadamente de Ílhavo, Mira e Cantanhede.
Os de Ílhavo, em especial das Gafanhas, pela ligação ancestral a Vagos e à Senhora de Vagos. Curiosamente, ou talvez não, as Gafanhas assumiram Nossa Senhora como sua padroeira, como é sobejamente sabido, com diversas denominações: Nazaré, Encarnação, Carmo e Boa Hora. O padre Rezende diz, na “Monografia da Gafanha”, que «o povo da Gafanha, desde épocas remotas, vai em novena à Senhora de Vagos», como a outros santuários, aliás. E os menos jovens ainda recordam essas novenas e a atração que a peregrinação anual despertava. A serenidade do lugar, amplo e convidativo, com a bênção da Mãe de Deus ali instituída há séculos, será motivo para tal predileção dos devotos.
Menção especial merece o povo de Cantanhede. O padre Carvalhais sublinha que, «atualmente, na segunda-feira imediata à Solenidade do Espírito Santo, cerca de duas centenas de pessoas mantêm ainda a tradição mais funda de percorrer a pé os trinta quilómetros que separam Cantanhede de Vagos, por um itinerário distinto do dos seus antepassados». Outros se vão juntando pelo caminho ou se dirigem para o santuário da Senhora de Vagos. Todos depois participam na festa litúrgica. E adianta o autor do livro “Santa Maria de Vagos”: «À tarde, após a recitação do Terço no recinto do Santuário, o pároco procede à bênção do Bodo que consiste exclusivamente na entrega de pães de trigo, confecionados em casa dos ofertantes ou em padarias locais, repartidos por cada romeiro cantanhedense em número igual ao das pessoas da sua família». Entre outras razões, da ordem da fé de cada um e de uma comunidade, aponta-se o agradecimento do povo de Cantanhede à Senhora de Vagos pelo benefício de «alcançar água no tempo em que não chovera sete anos», sendo esta «a antiguidade e privilégio que aqui é mais memorável».


Fernando Martins

domingo, 9 de março de 2014

O GIL EANES

Gil Eanes

Na madrugada clara, soalheira e fria destas latitudes, escutou-se uma voz longínqua, distante, muito distante mesmo, que apenas se percebia, mas que para alguns raros navios de atenção à rádio, a essa hora, soou como um brado de esperança e uma alvorada de aleluia.
Essa voz distante, confusa, falava português, chamava os lugres bacalhoeiros portugueses, designava mesmo os navios: Groenlândia, Maria Preciosa, Maria da Glória.
Mas vinha lá tão longe ainda, essa voz!...

sábado, 1 de março de 2014

Gafanha da Nazaré no Correio do Vouga

Foi à sombra da Igreja que surgiram
as principais instituições da Gafanha da Nazaré



A Gafanha da Nazaré, paróquia e freguesia, tem vindo a celebrar os 100 anos de existência. D. Manuel II assinou o decreto no dia 23 de Junho de 1910 (provavelmente, o último de criação de uma freguesia na monarquia), enquanto o Bispo de Coimbra criou canonicamente a paróquia no dia 31 de Agosto de 1910. Para assinalar o centenário, entre outras iniciativas, publicou-se o livro “Gafanha da Nazaré, 100 anos de vida”, da autoria de Fernando Martins, antigo professor do ensino básico, diácono, director do “Correio do Vouga” entre 1992 e 2004, profundo conhecedor da terra que o viu nascer. Entrevista conduzida por Jorge Pires Ferreira.


CORREIO DO VOUGA – Escreveu este livro (apresentado publicamente no Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, no dia 7 de Agosto) num tempo recorde. Tal deve-se, também, ao facto de há muito investigar e escrever sobre a Gafanha da Nazaré…

FERNANDO MARTINS – A paróquia fez-me o desafio no final de 2009: um livro para celebrar o centenário. Aceitei a missão, embora pensasse que não seria tarefa para uma pessoa só. Fiquei encarregado de arranjar uma equipa, mas depois resolvi assumir integralmente a tarefa da escrita. Na minha óptica, teria menos trabalho, evitando reuniões e revisões do trabalho de outros, até porque, de facto já tinha alguma coisa escrita e tenho as minhas próprias ideias. A verdade é esta: a paróquia tem 100 anos e eu vivi quase três quartos desse período. Março, Abril e Maio foram os meses mais intensos de investigação e escrita.

O livro não é uma autobiografia, mas alimenta-se certamente das suas vivências…

Eu estive sempre, desde menino, integrado na paróquia, desde a pré-JOC (Juventude Operária Católica – de que seria dirigente diocesano). Na freguesia, a mesma coisa. Sempre lutei, desde jovem, em defesa da Gafanha, quer integrando os seus organismos e associações, quer escrevendo nos jornais da JOC, no “Timoneiro” [mensário da paróquia], como correspondente do Comércio do Porto…

Hoje prossegue essa defesa na rádio e na imprensa regional e nos seus blogues Pela Positiva e Galafanha. Mas o uso mais eficaz da comunicação social talvez tenha sido a quando da elevação a vila…

Sim, antes da Gafanha ser elevada a vila (1969), dinamizei a campanha pela comunicação social, que na altura eram os jornais. Trouxe cá, com a colaboração do Daniel Rodrigues, um jornalista do “Diário Popular”, o Ângelo Granja, que fez a reportagem: “Do deserto nasceu uma vila” (21-12-1966). O processo de recolha de elementos para o processo de elevação foi elaborado pelo P.e Domingos Rebelo e por mim. Fui próximo dele e também de outros párocos.
O Daniel fez várias reportagens no “Comércio de Porto”, um jornal que na altura não era lido aqui. Tinha apenas um leitor. Fez-se então uma campanha de porta a porta, com ardinas a apregoar o jornal que trazia a reportagem do pedido de vila. Na minha sala foi dado um lanche aos jornalistas convidados para visitar a Gafanha da Nazaré…

Apesar de há muito escrever sobre a Gafanha, encontrou aspectos novos na investigação para este livro?

Destaco uns artigos que saíram no “Diário de Lisboa”, em 1947. Alguém alertou o jornal para o descontentamento que havia na Gafanha da Nazaré. Nas reuniões da Câmara só se falava da Ílhavo e da Costa Nova. Um enviado especial não identificado fez quatro reportagens. Penso que terá sido Carolina Homem Cristo, directora da revista “Eva”, a alertar o jornalista para o descontentamento. “Mão fina de mulher trouxe à nossa redacção…”, diz o jornal. Falava-se então da pretensão da Gafanha se desligar de Ílhavo e integrar Aveiro. Tínhamos na altura cinco mil habitantes. 
O mestre Mónica dinamizou uma petição que apresentou ao governador civil. Toda a gente assinou. A petição não seguiu para Lisboa porque o governador achava que era gente de mais. Procurei esse documento no Governo Civil, mas não o encontrei. Pode ter sido levado pelo fogo que entretanto atingiu o edifício. Houve uma manifestação em Aveiro com grande participação popular, mas o governador não apareceu. “Levei lá a gafanhotada toda”, dizia o mestre Manuel Maria Bolais Mónica [construtor naval].

As reivindicações contra Ílhavo são uma constante da história da Gafanha da Nazaré?

Ainda em relação a este episódio, deixe-me dizer-lhe que depois foram entrevistar João Senos, presidente da Câmara Municipal de Ílhavo, que disse: “Acredito que daqui a uns tempos a Gafanha da Nazaré não pertencerá a Aveiro nem a Ílhavo, porque será um concelho”. Disse aquilo para amaciar o pessoal. Mais tarde, um vereador escreveu para o jornal a protestar que o presidente não queria dizer isso. O jornalista respondeu que “podia não ter querido dizer isso, mas foi o que disse”.

Havia de facto mal estar entre a Gafanha e Ílhavo. O presidente da Câmara era sempre um ilhavense.

Isso só foi atenuado quando foi para a presidente Humberto Rocha (da Gafanha da Nazaré), seguido de Ribau Esteves (da Gafanha da Encarnação), que apagou todas essas fogueiras. Ribau Esteves teve a preocupação de alterar a situação, cumprindo a lei de distribuição de verbas proporcional ao número de pessoas e ao território.

O abandono da Gafanha da Nazaré estava especialmente patente na questão eléctrica…

Quando nos finais da década de 1940 a energia eléctrica passou para a Costa Nova, com a intenção de chegar ao Farol da Barra, a Gafanha continuava sem nenhuma espécie de energia. Foi aí que o povo se reuniu, de certa forma revoltado, e fez a Cooperativa Eléctrica, que foi a maior acção da unidade de um povo que apostava em si próprio. Era uma das maiores cooperativas de Portugal, porque todos os habitantes faziam parte dela. Para terem energia eléctrica tinham de ser sócios. Durou até depois do 25 de Abril. A cooperativa só foi dissolvida com a nacionalização da distribuição da energia e a criação da EDP. Era eu o presidente da assembleia-geral da cooperativa.

Que importância teve a paróquia nesta comunidade relativamente jovem?

Há quem me diga que o livro fala muito da paróquia. Mas foi sem dúvida nenhuma à sombra igreja que surgiram as principais instituições. Restaurou-se, por exemplo, o Grupo Desportivo da Gafanha, tendo eu empurrado para presidente da assembleia-geral o P.e Domingos Rebelo, na década de 50 do século passado. Outro exemplo: o Grupo Etnográfico nasceu a partir do desafio do P.e Miguel Lencastre. A catequese fazia sempre uma festa no final do ano com peças de base bíblica e cantorias, às vezes sem nexo. 
O P.e Miguel laçou o desafiou: por que é que vocês não fazem umas danças como as dos vossos avós? O Alfredo Ferreira da Silva era na altura o presidente da catequese e é hoje o presidente do Etnográfico. As reuniões destes grupos e da cooperativa eram nas salas da igreja. Até a primeira Junta de Freguesia, segundo a acta, “reuniu-se na sacristia do lado sul da igreja paroquial”.

Os padres foram pessoas determinantes no destino da Gafanha?

Sim, conforme a época. Não tinham rasgos, como hoje se vê, em termos pastorais. A pastoral era de manutenção, tradicionalista, como noutros lugares. Só não conheci o Prior Sardo, que morreu 1925. Eu nasci em 1938. Do segundo prior, P.e Guerra, nunca me lembro de ter feito uma homilia. A missa era em latim, as mulheres estavam sentadas no chão, os homens à volta, de pé. Alguns, mais ricos, tinham cadeiras. O Sr. João Catraio, de que falo no meu livro, tinha uma com genuflectório.

Mas o primeiro, o Prior Sardo (1873- 1925), foi fundamental para a criação da freguesia.

O P.e João Ferreira Sardo foi um grande político. O P.e João Vieira Resende escreveu no jornal “O Ilhavense”, em 1958, que era importante ele meter-se na política para chegar aos seus fins, criar a paróquia e a freguesia: O P.e Sardo “dava ordens e directrizes em que era obedecido sem restrições ou quaisquer objecções, criando por esta forma ambiente favorável à criação da freguesia, que ele desde há muito tempo trazia em mente”. Era o “rei daquelas terras”. O Prior Sardo tornou-se vereador e foi vice-presidente da Câmara de Ílhavo. Aproveitando uma saída temporária do presidente, ordenou o pagamento da rua da Gafanha de Aquém até à Gafanha da Nazaré. E liderou, na realidade, o processo de criação da paróquia e freguesia.

Entre os fundadores da freguesia e paróquia, além do povo, D. Manuel II, D. Manuel de Bastos Pina (Bispo de Coimbra) e o Prior Sardo, colocou no seu livro Nossa Senhora da Nazaré. Porquê?

Porque andava tudo à volta do seu culto. Ninguém sabe como surgiu aqui o seu culto, que será anterior à constituição da paróquia. Quando o Bispo de Coimbra mandou os examinadores para confirmarem se havia condições, o povo disse que queria que a padroeira fosse Nossa Senhora da Nazaré. Assim ficou.

Hoje a Gafanha está muito ligada ao mar, principalmente às actividades portuárias. No início também foi assim?

Ao contrário do que muita gente pensa, não foi assim. Colhi esse testemunho dos mais velhos. Eram principalmente agricultores, embora hoje haja pouca agricultura. Tinham a ria ao pé, mas não pescavam, nem apanhavam o moliço. Os moliceiros vinham da Murtosa e de Estarreja.

Mas a formação geológica da Gafanha – ou mesmo das Gafanhas – está muito dependente da regularização da Barra…

Sim, mas quando abriram a Barra, em Abril de 1808, durante as Guerras Peninsulares [os barcos para a manutenção do exército luso-inglês já passaram pela Barra), o crescimento não foi de rompante. Mas hoje podemos dizer que a Gafanha é filha do porto, sem dúvida nenhuma. O primeiro estaleiro veio para aqui em 1889.

Velha história é a da origem etimológica do nome “Gafanha”. Há hoje alguma teoria que seja mais consensual?

Brinco com isso no livro. Uma teoria que diz que provém de “gadanha”, alfaia de cortar o junto e o recebolo. Como o gafanhão era muito iletrado e deturpava muito as palavras, gadanha teria dado origem a Gafanha. Outra teoria diz que provém de “pagar o gafar”, um imposto para atravessar a ria. Outra, ainda, diz que era uma “terra gafada”, cheira de gretas da lama e do sol, como a pele dos leprosos… Ou que provém de “gafo”, leproso. Mas não consta que os leprosos viessem para aqui, embora os houvesse em Vagos e Mira.
A minha ideia é que “Gafanha” provenha de “Galafanha”, “Gala + Fânia”, que é também a opinião do Monsenhor João Gaspar, que muito preso. “Gala” quer dizer “terra alagada” (há uma Gala na Figueira da Foz); “fânia” é junco, que existe em abundância nas margens da ria.

Para terminar, o que destaca como motivo para visitar a Gafanha da Nazaré?

Tenho andado um bocado obcecado com a paisagem da ria. O desenvolvimento é muito bonito, mas tiraram a ria à Gafanha da Nazaré. A ria desaparece dos nossos olhares em toda a faixa até à Barra. Os portos industrial, comercial, de pesca longínqua e costeira ocuparam toda a faixa da ria. Só temos acesso à ria, muito apertado, na Associação Náutica e Recreativa da Gafanha da Nazaré. Julgo que a Câmara está interessada em desenvolver nova ligação.
A nossa sala de visitas é o Jardim Oudinot, com o navio-museu Santo André. Não temos grandes monumentos. Há algumas estátuas e uma âncora que evoca os homens da nossa terra que andaram e andam no mar, mas somos uma terra pobre em história. Por sermos pobres temos de dar mais valor às nossas coisas.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

O Marnoto Gafanhão


“O Marnoto Gafanhão” é um registo de memórias do Ângelo Ribau Teixeira, falecido em 11 de agosto de 2012. Foram muitos, familiares e amigos, os que sentiram a sua falta física, que a sua presença espiritual permanece em todos. 
Gostava imenso de ler e de escrever, como gostava da arte fotográfica e do convívio. Pessoalmente, posso testemunhar que bastante lhe devo. Durante a minha doença, que me obrigou na juventude a estar acamado, o Ângelo era visita quase diária. Lia junto ao meu leito e emprestava-me os livros da coleção do seu avô materno, Manuel Ribau Novo, e dos seus tios já então falecidos, o Padre Diamantino Ribau e o Dr. Josué Ribau. Sobre as leituras trocávamos impressões e entusiasmos.
Depois veio a sua paixão pela fotografia. Lia tudo o que surgia sobre o assunto, o que o levou a seguir as experiências de Niépce e Daguerre, construindo um laboratório e adquirindo os produtos químicos necessários para a impressão e não só.
No meu blogue Pela Positiva publiquei durante 15 semanas “O Marnoto Gafanhão”, para tornar conhecida a vida de um gafanhão que trabalhou na agricultura e na marinha de sal de que seu pai, Manuel Teixeira (mais conhecido por Manuel Elviro), era marnoto. Foi militar e cumpriu uma comissão em Angola, já casado, com um filho, o Boanerges, e outro a caminho, o Miguel. Mais tarde veio a Cláudia. 
Estudou à noite e seguiu a carreira de contabilista, tendo atingido a categoria profissional de Técnico de Contas. 
Apreciava no Ângelo, também, o gosto pelo estudo e pelo conhecimento, sendo um autodidata que lhe permitia abordar diversas questões  à vontade. Tantas vezes me telefonou ou me enviou e-mails para apoiar, discordar ou sugerir que me pronunciasse sobre este ou aquele tema. Quando isto não acontecia, devia estar doente. E estava mesmo. 
Penso que esta publicação na blogosfera poderá servir para os que escrevem e falam sobre  marnotos e moços, sem nunca  terem pegado numa rasoila, num ugalho ou numa canastra cheia de sal para o depositar no cocuruto do cone salino. Falta-lhes o saber de experiência feito. O Ângelo escreveu sobre o que viveu. Ainda bem.

Fernando Martins







O Marnoto Gafanhão
Ângelo Ribau Teixeira




1. Na Primavera/Verão

“Pois é meu menino... Reprovaste no exame de admissão ao liceu, agora vais saber como elas te mordem. Vais aprender à tua custa, a comer o pão que o diabo amassou!” — Diz-lhe o pai.
O Toino nem sabia o que dizer. Ele que na quarta classe fora dos melhores alunos… Só ele e outro foram, no exame, aprovados com distinção, e agora, passado um ano (esteve um ano sem fazer a admissão ao liceu a conselho do professor, por ser muito novo), chumbou!
A ordem em casa era: chumbou, o estudo acabou…
Foi o que aconteceu ao Toino. Agora, com o pai marnoto, já sabia o que o esperava: marinha. E nós, os filhos da casa sabíamos muito bem o que era o trabalho nas marinhas de sal pois durante as férias grandes, sempre éramos “convidados” a ir dar uma ajuda…
Os que ficavam em casa a ajudar a mãe, que agricultava as suas terras, também tinham os seus trabalhos. Ainda agora o Toino se recorda que não eram autorizados a ir nadar no esteiro pequeno, sem primeiro desmantarem dois cabazes de espigas de milho…
Na marinha, o trabalho de rêr (juntar o sal dos meios para o tabuleiro), de encher as canastras, de as transportar para o monte no malhadal (que ficava num sítio alto, para que as águas da ria não o atingissem), sempre a correr, era muito pesado até para um homem. Para nós, malta nova, era um suplício! E as férias eram grandes…
Agora o trabalho do Toino seria o de moço do próprio pai, andando sempre com ele em todas as suas labutas. De verão era a marinha, no Outono a apanha do estrume que seria utilizado no Inverno para as camas do gado e no Inverno era a apanha do moliço, que serviria para adubar as terras, que depois seriam semeadas na primavera. O Toino não sabia fazer nada disto. Nunca o tinha feito.
— Tu aprendes — diz-lhe o pai — que eu ensino-te. Aprendes e depressa. Se não “é porrada e água à jarra”!
Eu sabia o significado daquela frase, o que não me deixava nada descansado! O meu corpo é que iria pagar, como se tivesse sido eu o culpado no chumbo na admissão ao liceu.
Havia ainda outra coisa terrível. Quando vínhamos da marinha, tínhamos de pegar nos bois, pô-los ao carro e ir com eles buscar carradas de milho às terras, para no dia seguinte ser desmantado. Não havia sapatos para os pés, não havia qualquer proteção.
Os troços do milho eram duros e feriam-nos os pés, especialmente entre os dedos. No dia seguinte, na marinha, era uma desgraça pôr os pés naquela moira tão salgada. Só quem já sentiu tais dores, pode na verdade avaliar esse sofrimento!
Tanto valia pôr “pachos” (pedaços de pano embebidos em colódio) nessas feridas como não. Ia-se à farmácia, comprava-se o colódio e antes de ir para a moira, enchiam-se os “poços” (buracos feitos na carne pelo sal e a moira) com o colódio, que se colava na carne, por algum tempo.
As canelas, que enfolavam com o bater do sal, eram protegidas com “encoiras” normalmente de borracha, e que iam do pé até ao joelho, sendo amarradas com fio.
Tudo isto, quando se estavam a tirar resultados de muitos trabalhos anteriores, tais como a preparação da marinha, a limpeza das lamas acumuladas durante o Inverno, a preparação e arranjo das barachas (separações em madeira nas partes de baixo da marinha e que nas partes de cima eram em lama e alternadas com as canejas, também em lama e que era necessário anafar) depois de abertas com um “cabeça de carneiro” para que quando viesse o calor elas não rachassem - o que daria lugar à passagem de moira de uns meios para outros, que era prejudicial, pois uns ficariam cheios de moira e outros vazios, e isso não era conveniente. E porque não era conveniente, tinha de ser evitado…


2. A época da marinha começava por alturas da Páscoa


A época da marinha começava normalmente por alturas da Páscoa.
Era pelo abrir da bomba de tubo que tudo começava. Ia-se escoando a água da marinha, ao mesmo tempo que se ia apanhando algum moliço que existisse, começando pelos algibés, a parte mais alta e que primeiro secava. Depois reforçavam-se as barachas com a lama existente junto das mesmas, que era anafada enquanto se encontrava ainda mole, para facilitar o serviço. Este era repetido à medida que as diversas partes da marinha iam ficando secas:


— Algibés;
— Caldeiros;
— Talhos;
— Sobrecabeceiras;
— Cabeceiras;
— Marinha Nova (parte de cima);
— Marinha Nova (parte de baixo);
— Marinha Velha (parte de cima) e
— Marinha Velha (parte de baixo).

Todas as lamas eram arrastadas andaina a andaina (parte de cima + parte de baixo) até serem depositadas no intervalo, onde eram deixadas a endurecer. Endurecida, era baldeada à pá para a malhada, onde ficava a secar. Seca, era novamente baldeada agora para o malhadal para aumentar a sua altura e evitar que as marés vivas entrassem nas marinhas, servindo também para aumentar a altura das eiras do sal e protegendo-o das águas das marés vivas.
A baldeação das lamas para o malhadal era normalmente feita quando havia chuva que não permitisse o trabalho na marinha. Assim, quando nós víamos tempo de chuva, logo pensávamos: “Hoje vou dormir um bocado na tarimba”. Puro engano. Logo vinha a ordem para os moços: “Não está tempo de trabalhar na marinha. Peguem nas pás e vão baldear mais um bocado de malhada até o tempo estiar…”
Quando a lama era muita — o Inverno tinha sido muito pesado — e não era possível arrastá-la até ao intervalo, por as almajarras (pás com cerca de dois metros de largura, que tinham de ser manejadas pelo menos por dois homens) se tornarem muito pesadas, esta era deixada a secar nas partes de cima da marinha. Depois de seca era tirada, em canastras, para o malhadal.
Se os marnotos tinham posses, era falado a pessoal extra que vinha ajudar a transportar essas lamas.
Depois de tiradas as lamas, a marinha estava “limpa” e iniciava-se o tratamento das praias das partes de baixo, que eram secas até que ficassem duras, tarefa que levava o seu tempo, dependendo do vento, da temperatura e do sol que fizesse.
Com a praia com a dureza necessária (e isso dependia do marnoto, um verdadeiro técnico), era pisada com um círcio (objeto feito de um toro de pinheiro, com uns quarenta centímetros de diâmetro e cerca de um metro de comprimento, pesado e que tinha de cada lado um eixo, onde se aplicavam as “maueiras” que serviam para o puxar e empurrar) que ia e vinha do tabuleiro do meio até ao tabuleiro do sal em movimento contínuo.
Era meio-dia a passear para baixo e para cima, até que todos os meios estivessem circiados. Só as partes de baixo, onde iria ser colhido o sal, levavam este tratamento, dado com a praia quente, para evitar que a lama se colasse ao círcio. A praia tinha de ficar lisa e nivelada para que a moira ficasse com a mesma altura em todos os lados do “meio”, o que aumentava a produção de sal.
Para que cada meio ficasse devidamente nivelado, era “arriada” (passada) a água que se encontrava nas partes de cima para as partes de baixo. Essa água servia de nível.
Onde se encontrasse um cabeço era rapado com um rasoilo (rasoila pequena com cerca de vinte centímetros) e essa lama era retirada para o malhadal. Era um serviço moroso e de paciência, para que ficasse bem feito. E sempre vigiado pelo marnoto…!
Findo este serviço a água, que tinha estado nas partes de baixo e foi apurando o grau de salinidade era aproveitada, sendo ugalhada (atirada com um ugalho) para a parte de cima, onde continuava a apurar.
Nas partes de baixo continuava o serviço de preparação do terreno dos meios. Seriam essas superfícies onde se colheria o sal, pelo que teriam de estar bem niveladas e limpas.


3. Um dia destes será a "Botadela"


Um dia destes, quando o tempo o permitir e a marinha estiver pronta, será destinado o dia da “botadela”, normalmente um domingo. O marnoto dará um almoço, que será feito e servido na própria marinha, para o qual convidará os amigos. Para a comezaina e para ajudar na botadela que é um trabalho muito duro!
O tempo continuou propício, os dias foram de calor desde o nascer ao pôr-do-sol. Aproximava-se o dia da botadela. O anúncio foi feito:
— Será no próximo domingo…
A areia, miudinha e amarelada, muito limpa, como convinha, já estava pronta havia uns dias. Tinha sido trazida do Bico do Muranzel, por barco saleiro, e descarregada em três pontos do malhadal (os areeiros) de modo a ficar o mais próximo dos meios, para onde depois seria transportada.
No sábado anterior à botadela, na casa do marnoto, era uma azáfama com o preparar dos componentes para o almoço da botadela. Eram as panelas, as batatas, as cebolas e o inevitável bacalhau - o almoço era sempre batatas com bacalhau por ser, no dizer do marnoto, o mais fácil de confecionar.
Nunca eram convidadas mulheres ou raparigas para a botadela, ainda hoje estou para saber porquê! O serviço era muito pesado mas, pelo menos, poderiam ser elas a confecionar a refeição…
Chegou o sábado à tardinha e apareceram-nos em casa os convidados:
—  Então amanhã a que horas é?
— Amanhã vamos à missa da manhã, vocês passam pela minha casa para ajudar a levar as panelas. A bateira está ao pé da seca do Egas. É lá que a gente embarca. Quem não estiver a horas, fica em terra… - diz o marnoto.
E assim foi. Tudo como o combinado. O sol estava esplendoroso, nem uma nuvem no céu como convinha num dia de botadela. O pessoal embarcou, sentando-se na borda da bateira. Os moços pegaram nos remos preparando-os para remar. Dois dos convidados mais mexidos quiseram ajudar a remar e sentaram-se nos devidos lugares.
Foi retirado o cadeado que prendia a bateira ao moirão e com um pequeno empurrão esta afastou-se de terra. Saímos do esteiro e entrámos na cale. Era necessário cuidado, pois ao domingo toda a gente ia à missa da manhã (o pessoal trabalha ao domingo) e a saída para as marinhas era à mesma hora para todos. Eram centenas de embarcações que se iam espalhando por aquela ria.
— Eh, pá, olha! - Diz um dos convidados levantando-se e apontando na direção norte para onde se dirigia o maior número de embarcações. A bateira abanou violentamente.
— Senta-te! — Gritou o marnoto que ia ao leme — Ainda botas a bateira ao fundo!
O espetáculo era, para quem não o conhecesse, de pasmar! Dezenas e dezenas de bateiras saídas ao mesmo tempo do ancoradouro, tentando adiantar-se umas às outras, em verdadeira competição.
Não admira que na altura o “Clube dos Galitos” de Aveiro fosse durante uma série de anos Campeão Nacional de Remo, enquanto houve marnotos (moços de marinha) para remar.
Com o pessoal todo sentado seguimos viagem, até que chegámos à “Ilha do Robocho” (Ilha de Sama). Aí as bateiras dividiam-se: umas iam para a “Cale do Oiro” onde o Ti Zé Rito amanhava uma marinha, outras seguiam em frente para as “Leitoas”, marinha amanhada pelo Ti Manuel da Branca, outras ainda seguiam para o Esteiro dos Frades, onde se situava a marinha que íamos “botar a sal”.
Cruzámo-nos neste esteiro com o Firmino Piaca acompanhado pelos seus dois filhos, cagaréus e dos melhores remadores dos “Galitos”, que se dirigiam para a marinha que amanhava, mais a Norte.
O sol começava a aquecer. Os remadores já suavam. Chegámos finalmente à Ilha do Robocho, virámos a estibordo, seguimos mais um pouco e chegámos ao nosso destino a marinha conhecida por “Novazinha das Canas” ou pelo seu nome oficial “Novazinha de Sama”.
Espetámos uma vara, amarrámos a bateira, cada um levou ao ombro a sua carga e lá fomos pelos machos abaixo, deixando tudo junto ao palheiro. Agora ia começar a botadela…


4. A Botadela

Cada um pega na sua canastra e toca de acartar a areia dos areeiros para os meios. Os moços mais velhos iam dizendo qual a quantidade necessária para cada meio ao mesmo tempo que, com uma pá grande (pá de arear) iam espelhando a areia, que tinha de ficar com uma espessura tanto quanto possível igual. Para que isso acontecesse usavam uma técnica especial: enchiam a pá de areia e, enquanto a espalhavam, a pá era progressivamente voltada ao contrário, de modo a que quando acabava a areia, a pá estava de pernas para o ar.
Findo este trabalho, o moço mais velho que era habilidoso a cozinhar, foi tratar da bacalhoada, enquanto eram ultimados outros serviços.
O Ti “Marendeiro” preparando a bacalhoada.
Aproximava-se o meio-dia velho, hora de mais calor, altura em que se deveria abrir o tabuleiro do meio, dando passagem à água das partes de cima para as partes de baixo, onde iria formar-se o sal.
Era um trabalho altamente especializado que ficava a cargo do marnoto. Era executado com a pá do tabuleiro (pá em forma de cunha) que abria uma pequena passagem no portal existente no tabuleiro de meio. Dessa passagem dependia que a marinha “pegasse” bem, isto é, começasse a fazer sal logo no dia seguinte, ou não. Era uma greta pequena, para permitir a passagem de uma pequena quantidade de água, que vagarosamente se ia espalhando pela areia do meio.
Este serviço tinha de ser executado em todos os meios, um a um. Era um trabalho moroso, numa marinha que tinha cerca de cerca de cento e cinquenta meios.
Quando todas as passagens estivessem abertas, era dada uma volta mais rápida pelos tabuleiros. “Abre mais um pouco este, que a parte de baixo ainda tem pouca moira!”; mais além “Aperta um pouco a passagem com a pá e vai apertando a lama com o pé, que o meio já tem quase a moira suficiente!”
Quando a água passava das partes de cima para as de baixo (depois da botadela) era-lhe dado o nome de moira.
Agora, enquanto o tabuleiro se amanhava, o pessoal aproveitava para almoçar.
A comida era despejada do panelão para uma travessa grande e todo o pessoal comia dessa travessa. Cada um pegava no seu garfo, partia um pedaço de broa e toca a comer, que a manhã tinha sido de muito trabalho e tinha puxado pelo corpo…
No final da refeição, aquele que não estivesse satisfeito, pegava num bocado do miolo da broa que tivesse sobrado e fazia migas no resto do caldo da bacalhoada. Era saboroso. Mas, azar, não tínhamos trazido colheres! Só uma colher de pau grande, que serviu para mexer a comida enquanto era cozinhada e para a provar, para saber se estava bem temperada. “Não faz mal. Come um de cada vez e anda à roda”, foi o alvitre. Assim fizemos e não constou que alguém tenha adoecido!
Tinha acabado a botadela.
Agora havia que amanhar a marinha (pôr água nas zonas que haviam ficado em seco), serviço que passaria a ter de ser feito todos os dias. Foram fechados todos os portais dos tabuleiros do meio e abertos os furos com um moiradoiro que permitiam a passagem da água das canejas para as partes de cima.
A ligeira aragem que se fazia sentir e mexia a água que ia entrando, era a indicação da quantidade de água necessária. Nestes casos a prática é tudo!
Assim, foram "amanhados" (repostos os níveis de água) nas sobre-cabeceiras, nos talhos e nos algibeses, ficando a marinha amanhada para o dia seguinte. Nestes, não eram abertos furos, pois em cada um havia uma pequena bomba que era aberta para a passagem das águas, levantando-se as palmetas.
E assim se passou o dia da botadela. Eram cinco horas da tarde, de um domingo qualquer, de um mês de Julho de um ano qualquer…
Toca a arrumar as alfaias no palheiro, o moço mais novo com a jarra da água, agora vazia, ao ombro, e bota p´ra bateira de regresso a casa. Içava-se a vela, que o norte era fresco, e aí vínhamos nós!
Chegados à seca do Egas, amarrava-se a bateira ao moirão com o cadeado. Só agora estava terminado o dia. Salta para terra…
Estava terminado o domingo, dia de trabalho. E porque era domingo, nesse dia não haveria trabalho na terra.

5. Sal de "pedra" fina

Agora, por cerca de três meses, será sempre, todos os dias, uma repetição do que se fará a partir de depois de amanhã, terça-feira.
Hoje, segunda-feira, o tempo continua bom, com sol. A marinha “pegará macia”, o que quer dizer que o primeiro sal a ser colhido, será de “pedra” fina.
Logo que a moira aqueceu, o marnoto e o moço mais velho, pessoas experientes, pegam nos galhos e vão “bulir” (mexer a moira), misturando-a, para que toda aqueça ao mesmo tempo.
Quando o tempo se mantém sereno, sem vento, esta operação tem de ser repetida, à tarde, agora não para misturar a moira mas para quebrar as “peles” (uma camada finíssima de sal que se forma à superfície, quase como farinha, e que serve para temperar as saladas) que, por falta de vento, se acumularam à superfície. Autorizados pelo marnoto, os moços mais novos aproveitavam esse sal que depois vendiam a quem lho encomendava.
Passados dois dias, após a botadela, chegou a altura de começar a colher o resultado de tanto trabalho.
A marinha era dividida em três mãos (três partes, na vertical), o que quer dizer que só passados quatro dias a primeira-mão voltaria a ser rida.
Os meios eram quebrados (o sal era puxado com um galho dos lados dos meios para o centro dos mesmos —  para os vieiros) e daí, era rido (arrastado com a rasoila para o tabuleiro do sal onde ficava a escorrer). Quando todos os meios estavam ridos, puxava-se todo o sal para cima do tabuleiro que, ficando fora do contacto com a moira, escorria mais facilmente tornando-se mais leve, o que facilitava a dura tarefa de o transportar para cima da eira.

A “Novazinha das Canas” ia finalmente “estrelar” (pôr o primeiro sal em cima das eiras)… Os primeiros marnotos faziam-no com certa vaidade, pois era sinal de que tinham trabalhado bem na preparação da marinha…
A redura (quantidade de sal colhido) neste dia era pequena. Mesmo assim, lá foi a primeira canastra de sal para cima da eira!
— Estrelámos! — Diz o Ti Marendeiro.
Merendeiro, o moço mais velho, teve a honra de carregar com a primeira canastra…
Enquanto púnhamos as canastras a secar, depois de lavadas no esteiro, olhamos em volta.
— Só as “Cortes de Baixo e a de Cima”, que são mais “valentes”, estrelaram antes de  nós! — Diz o Ti Marendeiro, mostrando satisfação.

Não tardariam oito dias que todas as marinhas estivessem “a sal”, e então a vista da Ria seria maravilhosa, com todos aqueles montículos. Um sonho, mas um sonho em que o Tónio nunca pensara colaborar como efetivo, só nas férias… Enfim, a vida tinha-lhe reservado destas surpresas. E não seria a única.

Começou a época do sal, a mais difícil e trabalhosa das marinhas.
Era levantar cedo, pegar no cesto com o “tacho” - normalmente um tacho com “caldo” uma sopa consistente para o pequeno-almoço, e um mais pequeno com o “conduto”, que juntamente com um pedaço de broa serviria de almoço - preparado pela mãe, que para tal se tinha de levantar cerca das cinco horas da madrugada.
Chegados à casa do João Banca, era pegar na vela da bateira que aí ficava todas as noites, na jarra da água que todos os dias era cheia - era impossível esquecer a água no ambiente salgado onde se trabalhava. Um moço com a vela ao ombro, outro com a jarra, e íamos para a bateira. Chegados, cada um tomava o seu lugar. Dois, um a cada remo. O marnoto ao leme e os restantes sentados no bordo da bateira, abriam os cestos e comiam a primeira refeição (a mais consistente do dia).
— Vá, toca a comer depressa que os camaradas que vão ao remo “tamem” têm de comer antes de chegarmos à marinha, que hoje lá não falta trabalho!
Chegados, os cestos da comida eram pendurados em cruzetas existentes no intervalo, onde corria sempre água, o que evitava que a comida fosse atacada pelas formigas que abundavam nas marinhas de sal.

E começava a faina.
Ugalhos e rasoilas ao ombros e lá íamos nós para a “mão” onde era para colher o sal. Eram cinquenta meios que teriam de ser colhidos naquele dia. Cada um daria cerca de três canastras de sal.
O Tonio ia rendo e pensando: “Mais ou menos três canastras por meio, vezes cinquenta meios, dá cento e cinquenta canastras, a dividir por três (os moços que transportavam o sal para a eira), dá a cada um cinquenta canastras… cinquenta vezes do tabuleiro até à eira… em média cinquenta metros do tabuleiro à eira, metade carregado com cerca de sessenta quilos de sal, e no retorno com a canastra vazia...”
— Anda-me com essas mãos rapaz, senão adormeces! —  Grita lá de longe o marnoto.



Toca a andar era a solução…
Rido o sal, depois transporá-lo para a eira, levou o seu tempo. Quando terminámos era já meio-dia velho. Toca a lavar as alfaias e as canastras e pô-las a secar, foi o serviço seguinte, até que chegou a ordem do marnoto:
— Toca a comer enquanto eu vou abrir o tabuleiro, mas depressa, porque temos que ir limpar aquelas cabeceiras do meio.
Enquanto estivéssemos naquela malvada marinha havia sempre serviço para fazer. E se não houvesse, parece que se inventava… Maldita vida, a de quem trabalha nas marinhas de sal!
Pegámos nos cestos, comemos o resto do caldo que havia sobrado da manhã, depois o conduto que estava destinado para o meio-dia — normalmente peixe frito, com um naco de broa — e estávamos almoçados, depois de pôr a boca na jarra a beber umas goladas de água valentes.
Estava terminada a manhã desse dia. Entretanto o marnoto, que tinha acabado de “amanhar” o tabuleiro, pega num pedaço de broa, numa posta de peixe frito, pendura o cesto na cruzeta do tabuleiro e vai debicando o almoço enquanto ordena ao pessoal:
— Toca a reformar (renovar) as águas do resto da marinha…
O Toino já chateado com tanta ordem:
— Nem deixa uma pessoa endireitar as costas. É só toca, só toca…” diz, dirigindo-se  ao moço mais velho ao Ti Manel. Este que sabia com quem lidava responde ao Toino:
— Se o marnoto te ouve levas uma pazada pelas costas, que é para ouvires, cumprires as ordens e calado…

Reformada a marinha, os serviços foram nesse dia dados por terminados, as alfaias foram arrumadas no palheiro, que foi fechado à chave e esta escondida no malhadal, entre as ervas, ou no buraco de uma rata.
Antes de regressar, o marnoto corre a vista pelo horizonte, tentando adivinhar o tempo que iria fazer no dia seguinte. O vento norte era fraco. O céu estava azul. Depois correu a vista para nascente. A serra do Muradal, a serra do Caramulo…
— Oh, diabo. Amanhã vamos ter nordeste...
— Como é que sabe? - Perguntou o Toino.
— Vês aquelas “pombinhas” acolá por cima da serra?” — E indicou pequenas nuvens brancas que se mantinham sobre a serra — É sinal de nordeste amanhã”
— ???
— Amanhã verás que eu tenho razão!
E partiram para a bateira de regresso a casa.
Novo dia, repetição do serviço do dia anterior. Rer, acarretar o sal para o monte que ia crescendo no malhadal, amanhar a marinha…
Só que neste dia o sol já era mais quente que no anterior. Na verdade o marnoto sabia o que dizia. Veio nordeste, vento quente, que aumentou a produção de sal - cada meio produziu mais cerca de uma canastra de sal. Estávamos no mês de Junho, os dias eram mais compridos, havia mais tempo de sol, a produção subia e o trabalho aumentava. Felizmente que ainda não havia feridas nos pés. Quando elas chegassem, com a temperatura da moira, seria um sacrifício enorme. Só quem já sentiu essas dores, pode avalia-las. É de rilhar os dentes… Quando se anda muito tempo com os pés dentro da moira e eles estão feridos os “poços” chegam a atingir o osso…
Mais um dia, quase igual a tantos outros. Só que este mais trabalhoso. E se o tempo continuar com nordeste, a produção de sal aumentará e o trabalho também, já que há aumento de produção, mas não aumento de pessoal para acompanhar o da produção!
Não tardarão muitos dias que de tanto caminhar por machos e pranchas, as solas dos pés comecem a ficar desgastadas e a aparecer “pintassilgos” - pequenas manchas vermelhas provocadas pelo desgaste das solas. Então quando se anda a acarretar o sal e uma pedra maior é pisada pela sola do pé naquele local, atinge a “carne viva”… O Toino, ainda rapaz novo mas que tinha de alombar com a sua canastra, não conseguia evitar uma lágrima rebelde que lhe corria pela cara!
Mais outro dia, este pior que os outros, na perspetiva dos moços, melhor, do ponto de vista do marnoto. A produção aumentava com as temperaturas e os montes de sal era vê-los crescer no malhadal. A “roda” do monte (sítio mais alto onde chegava um homem com os braços esticados e onde ficava assinalado o formato das canastras do sal que aí era depositado) estava cheia. Era necessário agora transportar o sal para o cimo dos montes, para o curuto! Eram colocadas duas pranchas de madeira, uma que ia da base da eira até ao cavalete (uma espécie de dois triângulos ligados entre si por barras de madeira) e a outra do cavalete ao cimo do monte.
Se a tarefa em princípio era dura, agora essa dureza duplicava. As pranchas de madeira cheias de sal “comiam” as solas dos pés. Enfim, era aquela a vida de quem trabalhava nas marinhas de sal e não havia como fugir-lhe. Os trabalhos eram poucos naquela altura e era, para os homens, a agricultura ou as marinhas de sal, e para as mulheres, as secas do bacalhau. Havia ainda os estaleiros navais e as oficinas de serralharia e carpintarias, mas estes eram para pessoal com outras especializações. Nas marinhas de sal, só o marnoto era altamente especializado. O restante pessoal era força bruta…
Havia que trabalhar. Era a solução! O nordeste duraria ainda mais uns oito dias segundo as previsões do marnoto, e a produção sempre a aumentar!
Desanimados, ainda ouvimos o moço mais velho dizer, enquanto comíamos ao meio-dia:
— O pior ainda está para vir…
— Porquê? — Perguntámos.
— Com a temperatura da moira provocada pelo nordeste, todas as pedras de sal se vão transformar em “pregos”. A marinha vai ficar “encaldada” e dará muito mais trabalho. O sal fica tão duro que parecem autênticos pregos que se espetam nas solas dos pés, provocando dores horríveis!
Assim foi. A temperatura da moira aumentava, a produção subia, e lá apareceram os “pregos” com todas as suas consequências…
Nesses dias vínhamos mais tarde da marinha, porque à tardinha, todos os meios tinham de ser “bulidos” para quebrar todo aquele sal e para que, no dia seguinte, fosse mais fácil “rer”, tentando evitar toda aquela pregaria. O que nem sempre se conseguia…
Assim passámos quase uma semana. Mas como é que o marnoto sabia que o nordeste iria durar uma semana?! Coisas que só a prática da vida nos dá!
O tempo parece querer arrefecer. Ao fim da tarde, o vento do norte, fresco, parecia querer vencer o do nordeste ainda muito quente… O Toino perguntou ao pai se iríamos ter mudança de temperatura. Este olha desde a boca da barra, passa o olhar por cima do campo de aviação de São Jacinto, por cima da mata, até ao Muranzel. Aí para, aspira o ar com força, olha as serras, e diz:
— Dentro de uns dois dias vamos ter norte fresco!

6. “Valha-nos Deus, que já não será sem tempo”


“Valha-nos Deus, que já não será sem tempo”, pensava eu, “ao menos aquelas temperaturas tórridas, a que não faltava sequer a falta de vento irão acabar. Oxalá o meu pai também acerte desta vez!”
Assim foi. Passados que foram cerca de dois dias, logo se notou pela manhã a temperatura a refrescar. O dia já foi menos quente e pela tarde, ao regressarmos a casa, chegados à “boca” do Esteiro dos Frades, foi dada ordem de içar a vela, que puxada pela “ustaga” se fez chegar ao cimo do mastro. Orientada pela escota de acordo com a direção do vento, lá ia a bateira em direção ao seu ancoradouro, junto à seca do Egas. O marnoto, sentado no “cagarete”, governava a bateira e ia orientando a vela, puxando ou largando a escota, que era presa na borda de sotavento. Com vento fresco a viagem era rápida e o esforço praticamente nulo. Era só içar a vela e arreá-la ao chegar ao ancoradouro.
Com a falta de temperaturas muito elevadas a produção de sal ia lentamente baixando. Mas, mesmo assim, trabalho nunca faltava. Os tabuleiros onde o sal escorria, para depois ser transportado para o monte, os “machos” por onde passávamos com as canastras cheias de sal, não eram mais lama dura. O sal tinha-se entranhado na lama e aqueles locais eram autênticas máquinas de lixar as solas dos pés. Só quem andou naquela vida pode fazer uma ideia correta dos sacrifícios que o pessoal das marinhas passava.

Estávamos em Agosto, o primeiro mês de “Inverno” para as marinhas, palavra de marnoto, dado que começavam os primeiros nevoeiros e a produção de sal diminuía a olhos vistos!
—  Hoje trouxe uns sacos para levar sal para casa — Diz o marnoto — Quando chegar o Inverno tenho de ter sal para salgar o porco, quando for a matadela. Logo não vimos para o Egas. Vamos para a Cambeia, que tenho lá a minha mulher à espera com o carro dos bois.
E assim foi. Terminados os trabalhos do dia, foram enchidos os sacos e transportados em padiola para a bateira.
Depois de arrumadas as alfaias no palheiro, fechado este e arrumadas as chaves, demos início ao regresso a casa. O vento era fraco, mas mesmo assim içámos a vela, e lá viemos desta vez em direção ao Esteiro do Oudinot, por onde chegaríamos à Cambeia. Mais adiante, no Jardim do Oudinot, as árvores altas impediam o vento de chegar à vela, pelo que a solução era os moços saltarem para terra e com uma corda (a cirga), puxarem eles a bateira pelo Esteiro fora, que tinha cerca de dois quilómetros de comprimento, enquanto iam conversando.
O marnoto, sentado no cagarete, ao leme, ia governando a bateira, para que não fosse contra as estacas de cimento ou se desviasse demasiado para o meio do esteiro.
Um moço, já com idade, pequeno de físico mas rijo de nervos, pele tisnada pelo sol e também pelo vinho que diariamente ingeria, avistou um grupo de turistas sentados debaixo de uma árvore, no jardim do Oudinot, a merendarem, refastelados…
— Querem ver? — Pergunta o Gandarinho.
— ???
— Anda, puxa rápido, mais depressa… mais depressa senão o peixe foge todo…
E nós, toca a puxar, cada vez mais rápido, feitos parvos, sem saber o que ia naquela cabeça…
As senhoras do grupo de turistas levantaram-se e pediram para nós lhe vendermos o peixe que estávamos a pescar, que era fresquinho, e que elas ali mesmo o assariam para o seu pessoal. Mas o Gandarinho era só:
— Puxa, puxa…
O marnoto lá do seu cagarete, ainda intimou:
—  Ó João, não é preciso tanta pressa!
Mas qual quê! O Gandarinho era só:
— Puxa, puxa…
Mais adiante, quando já não podia ser ouvido pelos turistas, o Gandarinho solta tamanha gargalhada, que o deixou da cor da pele de um tomate…
— Vês? Com papas e bolos se enganam os tolos… Aqueles viram uma bateira e logo pensaram que ia a pescar!
E isto, para ele, foi uma vitória… Só os “ricos” gozavam férias! E aqueles ali refastelados eram, para o Gandarinho, ricos…
Entretanto fomos andando e chegámos ao nosso destino. Agora era só passar por baixo de uma das “portas de água”, para poente, com cuidado, que elas eram de pedra. Passámos! Lá estava o carro de bois à nossa espera. Descarregámos o sal e o carro seguiu para casa. Passámos novamente por baixo das portas de água, agora para nascente onde se encontrava o “moirão” a que íamos amarrar a bateira. Lá chegados, passámos o cadeado à volta do moirão, e já nos preparávamos para regressar a casa, quando aparece o Cabo de Mar (autoridade marítima) com poderes para tal, a perguntar pela licença do moirão! O meu pai foi à proa da bateira e mostrou-lhe a licença.
— Não — diz o Cabo de Mar —  Esta é a do moirão localizado junto do Egas. Este moirão precisa de outra licença…
— Mau! — diz o meu pai zangado — A lei mudou?
— Mudou sim senhor — diz a autoridade — e você devia saber! Para não ser multado tem de apresentar a licença dentro de oito dias no “Posto”.
— Sim senhor. Assim farei!
— Cada moirão, cada licença, sim senhor - dizia o marnoto, entre dentes - Mesmo sendo para a mesma embarcação… Só me faltava esta! - Ia resmungando… - Faltar um dia à marinha por causa da porra de uma licença do moirão!
E durante o resto da tarde, não falava noutra coisa…
À noite, à “ceia”, ele teve uma ideia!
— Oh Toino! Tu amanhã não vais à marinha. Pegas na bicicleta e vais a Aveiro à Capitania tratar da licença do moirão, para a Cambeia. És capaz disso?
— Sou sim senhor! —  Respondi eu, pensando no dia seguinte, em que não precisava de ir à marinha.
—  Então ficamos assim: a Capitania abre às nove horas, tu levas os documentos da bateira, que o registo é preciso. Vais lá de manhã e terás de lá voltar à tarde que “eles” levam tempo a passar a licença. Perguntas quanto ela custa e à tarde pedes dinheiro à tua mãe e vais lá, pagas e levantas a licença!

Assim foi. Tratei de tudo como me foi ordenado e à tarde regressei, com a licença no bolso. Nem as duas viagens a Aveiro de bicicleta me custaram a fazer! Teria sido pior se tivesse ido à marinha naquele dia e tivesse andado a “alombar” com a canastra à cabeça… Antes dos oito dias, a licença do moirão da Cambeia foi apresentada no posto ao Cabo de Mar!

A safra ia adiantada. Qualquer dia terminaria! Começavam os tempos a refrescar e a produção de sal ia diminuindo. O marnoto até já tinha encomendado a “bajunça” para ir cobrindo os montes de sal maiores, era só ela chegar… Os montes eram “achegados” (alisados). O marnoto subia para o curuto por uma escada e de lá, com uma pá de cabo muito comprido e um rasoilo, ia puxando o sal para cima, enquanto os moços, da eira e de pá em punho, o iam baldeando, da saia para cima, de modo a que o cone de sal ficasse liso. Qualquer quebra ou cova na linha do monte, mesmo com o sal coberto, provocaria infiltrações da chuva, dando lugar a furos negros que só seriam notados quando o sal dali fosse retirado.

Só depois todo o monte era batido com pás, ficando todo liso, e com a inclinação necessária e suficiente para que a bajunça não escorregasse por ele abaixo! Chegada a bajunça, eram então cobertos com ela, em camadas sucessivas, seguras com punhados de lama dura e empastados a cerca de trinta centímetros uns dos outros, em cada carreira de bajunça. No curuto, a lama dura cobria a sua totalidade.

Enquanto isto, tínhamos de ir aproveitando o sal que a marinha produzia e que era transportado para outras eiras, preparadas ao lado dos montes de sal que estavam a ser cobertos.
Estávamos em fins de Agosto quando o vento Nordeste se lembrou de nos vir fazer uma visita!
—  Humm… —  Diz o marnoto entre dentes — Isto não é tempo deste tempo! Cheira-me a esturro…
— Mas pai — diz o Toino — as “pombinhas” lá estão por cima da serra…
—Toca a trabalhar que amanhã vai haver mais serviço do que hoje!

E vieram mais dois dias de nordeste, menos quentes do que os anteriores que tinham vindo em Julho, mas mesmo assim ainda dias quentes!
Depois surgiu o tal cheiro a esturro… Ao terceiro dia, logo pela manhã apareceram nuvens sobre as serras, mas de cor escura, indício de trovoada, segundo o marnoto. Logo havia que tomar decisões:
— Vamos rer a mão que era para rer hoje e tirar o sal para cima de eira — diz o marnoto — que se o tempo piorar ainda temos de rer outra mão.
E não é que, mal acabámos de tirar o sal para a eira e lavadas as canastras, as nuvens negras começaram a crescer, da serra para o lado do mar? Mas como…? O vento soprava com uma brisa fresca do mar para a serra!
— O vento cá por baixo é fresco e por isso não sobe, mas corre para terra, obrigando o ar quente da serra a subir — por isso as nuvens que trazem chuva — que correm ao que parece, contra o vento, porque nós cá em baixo só sentimos o vento que corre do mar para terra, mas durante a próxima noite teremos as nuvens em cima das marinhas. Chover ou não eis a questão! Vamos rer a mão que era para rer amanhã, porque se chover de noite o sal “vai-se todo embora”!- E assim terminou o marnoto a sua explicação.
Voltámos a pegar nas alfaias e toca a voltar ao trabalho. Passadas umas duas horas estava o serviço terminado. A mão tinha sido rida, o sal bem puxado para cima do tabuleiro, não fosse chover muito e o sal ser comido pela chuva!

Nessa noite choveu bem. No dia seguinte não sabíamos o que iríamos encontrar na marinha. Possivelmente as lamas terão escorrido dos tabuleiros e dos machos para os meios, que terão ficado sujos com essas lamas. Amanhã se verá!

O dia acordou com sol. Foi uma trovoada que só por onde “passou” terá provocado mais estragos. Mas o dia estava lindo ao chegar à nossa marinha. Já se conversava entre os marnotos que, se a chuva tivesse feito muitos estragos, não valeria a pena continuar a trabalhar nas marinhas. Tudo dependia de como teriam ficado! Chegados, verificou-se o esperado. A chuva na nossa marinha tinha causado estragos. Os meios onde se fabricava o sal estavam escuros, cor provocada pela lama escorrida dos machos e dos tabuleiros, quando na época da recolha do sal estão brancos.
— Vamos tirar o sal que está no tabuleiro, mas primeiro vamos por areia por onde temos de passar, não vá haver uma escorregadela e alguém partir uma perna!
Assim foi. Tirámos o sal para cima da eira, lavámos as canastras e os punhos, que foram postos a secar.
O sol estava radioso e o marnoto e o moço mais velho trocavam impressões:
—  Humm… se o tempo continuar assim, bom… temos de fazer uma limpeza à marinha para continuar a fazer sal.
E se assim o disse melhor o fez.
Depois do jantar (ao meio dia) ele e o moço mais velho pegam nos ugalhos e toca de ugalhar a “agua” (na altura já não era moira, já que a chuva a tinha adocicado), das partes de baixo para as partes de cima, passando-a por cima do tabuleiro do meio. Os moços iam-na empurrando com galhos para junto do tabuleiro do meio, donde era ugalhada por quem sabia, para as partes de cima.
Esta água ficava a “apoitar” pelo menos um dia, para que a lama provocada pela chuva acamasse no fundo do meio. Depois era aberto o tabuleiro do meio e a água correria novamente para as partes de baixo onde, pela ação do calor do sol, se tornaria novamente em moira, dando origem ao sal!

7. A safra terminou

A safra já ia comprida e alguns moços começavam a reclamar. É que eles eram “ajustados” por safra e não havia outro prazo de prestação de serviço. Enquanto as marinhas fizessem sal, eles tinham de cumprir! Por isso quando a safra era comprida, alguns anos havia marinhas que apareciam “alagadas”. Era fácil, bastava alguns moços juntarem-se durante a noite, abrirem as bombas de tubo, deixarem-nas abertas e quando na manhã seguinte chegassem às marinhas, encontravam-nas cheias de água da ria… e então não havia mais nada a fazer. Com o verão a terminar, as temperaturas a baixar, era o fim.
E assim sucedeu. Chegados à marinha no dia seguinte, foi retirado o sal que se encontrava aproveitável, dos tabuleiros para os montes. Começaram a limpar a marinha, que se encontrava muito suja e de difícil limpeza. Pela tarde começaram de novo as nuvens de trovoada a aparecer do lado da serra.
—  Toca a arrumar as alfaias e vamos embora que isto não está nada bom! Se amanhã continuar a trovoada acaba-se com a marinha… — diz o marnoto desgostoso!
No dia seguinte voltaram as trovoadas e o marnoto, depois de consultar os seus vizinhos da “corte”, resolveram terminar com a safra. Agora era só achegar as “mancheias” (pequenos montes de sal), cobri-las e estava terminada a safra. Os moços mostravam-se satisfeitos. Finalmente iriam receber o que tinham contratado e tentar arranjar trabalho noutro sítio.

8. No Outono

Tinha terminado a safra da marinha. Agora havia que terminar as colheitas. O feijão já estava nas caixas, seco e preparado para ser consumido até à próxima colheita, no ano seguinte. Havia agora que colher o resto do milho, que começava a aloirar nas terras. As suas canoilas grossas eram difíceis de cortar com a foicinha. Era necessário aplicar muita força para executar o serviço!
Apanhado, era carregado para a eira, onde era desmantado e as espigas postas a secar. Secas, estas eram debulhadas a malho como antigamente, ou mais recentemente, com debulhadora mecânica, alugada para o efeito.
Feito isto, o grão era posto a secar na eira, onde depois de seco era erguido numa máquina (o erguedor) e voltava novamente para a eira para que ficasse devidamente seco e pudesse ser armazenado sem qualquer humidade. Caso assim não fosse, havia o perigo de o grão com a humidade aquecer e “queimar”.
Se durante a seca havia sinais de chuva, logo os “toldes” (cobertura feita com palha de centeio, que fazia lembrar as coberturas existentes nas casas das sanzalas Africanas) eram postos sobre o milho que se havia juntado para o centro da eira (por ser a parte mais alta) em forma do telhado de uma casa. Não havia chuva que entrasse.
O modo como o lavrador sabia se o grão estava pronto a armazenar, era trinca-lo. Se o meio estivesse bem seco era sinal de que poderia ser armazenado sem perigo!
Agora recordo que uma vez, em vésperas da festa da Nossa Senhora dos Navegantes, o meu pai nos ter avisado:
— Amanhã ninguém vai à festa. Temos o milho apanhado na “Terra do Golaima” e temos de o ir buscar, porque o tempo está “ousado” a dar chuva!
Engolimos em seco. Perder aquela festa é que não podia ser! Combinámos então nós, os quatro irmãos, que tínhamos de ir à festa. E, pela calada da noite, tirámos os bois do curral, pusemo-los ao carro, e saímos de casa silenciosamente, rumo à Terra do Golaima. Quando lá chegamos já se viam os primeiros alvores da madrugada. Já víamos para trabalhar!
Toca a andar, que se faz tarde. O mais velho, que era artista nesse serviço, em cima da carrada, a arrumar o milho que os outros lhe atiravam às gabelas. Era um desaforo a trabalhar! Mas cuidado, o milho era muito e tinha de ser todo levado numa carrada. Era preciso arruma-lo bem! Findo o serviço, foi tudo muito bem amarrado com o “adibal”. Agora era rumar a casa, mas devagar, não fosse a carrada de milho desmoronar, e termos de repetir o serviço…
Chegados a casa, os bois foram tirados do carro e este posto ao pino. Era o processo mais rápido de o descarregar. O sol já se levantava por trás das serras. Ia nascer o dia. Agora era meter os bois no curral e dar-lhe uma gabela de palha, que bem a mereciam. Amarrados à manjedoura, foi-lhes servida a primeira refeição do dia. Mas, ao sair do curral, aparece-nos o nosso pai a indagar:
— O que é que estão vocês aí a fazer?
Contámos-lhe o sucedido e ele foi ver a carrada de milho já descarregada.
— Vocês não têm juízo. A andar com o gado por aí de noite! Vocês nem deixam descansar os animais! Vocês dão-me cabo dos bois…
Ele tinha que ralhar. Tinha que dizer alguma coisa. Ficar calado não era do seu feitio… E como não tinha agora razão para não nos deixar ir à festa… Mas nós nada dissemos, bico calado! O melhor, quando ele estava assim, era nem abrir a boca.
E lá fomos nesse dia à festa. A nossa mãe, antes de partirmos recomendou-nos:
— Cuidado com o trânsito. É por causa disso que o vosso pai não vos queria deixar ir à festa. Ele tinha “medo” por causa do trânsito…
Fomos para a festa, pelo meio daquele trânsito todo, e regressámos à noitinha, sem ter havido qualquer problema. Ir à festa de noite, ir “ao fogo” era impensável…
— Ainda são muito novos para andarem por aí de noite sozinhos — era a resposta. Invariavelmente!
Mas já não interessava. O nosso plano tinha resultado e o fogo de lágrimas vimo-lo do aido. Pena foi o fogo de água que era na altura o mais bonito, mas que da nossa casa não se via bem! Não se pode ter tudo de uma vez, pensámos!
Foi feita a colheita do milho.
Agora havia que preparar as terras para a sementeira das ervas que durante o Inverno iriam alimentar o gado. Os terrenos teriam de estar devidamente preparados para, com as primeiras chuvas, as sementes serem lançadas à terra.

9. Foram limpas as leiras

Foram limpas as leiras, das felgas e de todas as ervas daninhas. As milhãs eram apanhadas à foicinha e iam servindo para a alimentação dos animais. Havia sempre qualquer coisa para fazer.
Agora que as terras estavam prontas, tínhamos que esperar pela chuva, para as podermos semear. Entretanto, o pai do Toino diz:
— Enquanto não chove e há pouco que fazer, amanhã pegamos na bateira e vamos à marinha apanhar uma bateirada de estrume, que servirá para as camas do gado, quando chegar o Inverno.
E o Toino que pensava que iria chegar um período de acalmia no trabalho, que lhe daria a possibilidade de ler uns livros da biblioteca existente lá em casa e que tinha sido dos seus tios… Puro engano!
O Toino era novo. Tinha ainda pouca força para puxar a bateira à cirga, pelo que o pai saltou para terra e o Toino tomou o lugar de timoneiro, tentando governar a bateira o que, dada a falta de prática, não foi nada fácil. A bateira ora batia contra as estacas de cimento, ora se afastava para o outro lado do esteiro, o que tornava difícil a sua progressão pelo esteiro adiante! E lá vinham as ameaças:
— Ó tu governas a bateira como deve ser, ó quando chegarmos ao fim do esteiro e eu saltar para bordo, levas com a vara pelas orelhas que até te consolas, que é para aprenderes…
Chegámos ao fim do esteiro, ele entrou para a bateira, pegou na vara, e lá veio o castigo… Enxugando as lágrimas à manga da camisa o Toino ia pensando “Isto não pode ser vida para mim. Tenho de me desenrascar. Isto não pode ser…”
Chegados à marinha a maré estava baixa. Encalhámos a bateira que ficou em seco, facilitando o transporte do estrume para bordo.
À medida que o pai ia gadanhando o estrume, o Toino ia-o enfeixando, depois apertava o feixe com uma corda e transportava-o à cabeça para a bateira. O estrume era leve e a bateira estava perto, pelo que o serviço até ia correndo bem! Mas… Quando uma das vezes me dirigia para o local onde ia fazer o próximo feixe, vejo o meu pai atrapalhado, a correr atrás de qualquer coisa, com a gadanha em riste. Aproximo-me e o que vejo eu…? Uma cobra cortada ao meio pela gadanha do meu pai! Fiquei com medo!
— Esta já não faz mal a ninguém - diz o meu pai…
— Esta não. E se aparece outra que tu não vês e vai no feixe, apanha-me um dedo e morde-me? — Fiquei aterrorizado!
— Já não vai haver mais outra cobra e isto são cobras de água, não fazem mal a ninguém!
— Já não levo mais feixe nenhum - digo eu apavorado…
— Ai levas, levas! Senão queres levar o feixe à cabeça, levas com o cabo da gadanha pelas costas que é para aprenderes!
E o cabo da gadanha convenceu-me…
Continuámos com aquele serviço. Logo que sentia o feixe de estrume na cabeça, corria o mais que podia para a bateira. E assim, entre o feixe despejado na bateira e novo feixe à cabeça, havia um período que eu prolongava o mais que podia, caminhando vagarosamente na direção do meu pai, que continuava nervosamente gadanhando o estrume até que eu chegasse para ele fazer novo feixe, e pô-lo na minha cabeça!
Enfim, lá carregámos a bateira, já a maré estava quase feita, e regressámos à Cambeia, onde nos esperava o carro de bois para onde transferimos a carga da bateira. Estava quase terminado o dia de trabalho. Era amarrar a bateira no moirão, trazer o carro de bois com o estrume, chegar a casa, descarregar o estrume para o “rolheiro” meter os bois, dar-lhe o jantar e estava feito!
Agora era só esperar pela nossa ceia, comer e o nosso dia de trabalho terminava.
Entretanto, enquanto esperava, peguei num livro que ia lendo aos pedaços, quando a disponibilidade mo permitia. Era “As Pupilas do Senhor Reitor” um livro leve e agradável, escrito por Júlio Dinis. Terminado este, já punha o olho numa extensa coleção de capas vermelhas que existia numa estante…. Vinte e tal livros do mesmo autor - Júlio Verne - que resolvi, logo que tivesse tempo, começar a ler. Ordenei as minhas ideias e decidi que começaria pelo número um: “Da Terra à Lua”. Sempre que havia algum tempo livre, era lido mais um bocado do livro. O que era necessário era estar tempo de chuva, pois se não chovesse, lá estavam as terras para semear…
Mesmo assim, sempre se arranjavam uns bocados de tempo para leitura, às vezes com a ajuda do pai do Toino, que já tinha lido toda a coleção e que, quando andava bem-disposto, ia contando parte daquilo que tinha lido, enquanto trabalhavam.
Do primeiro livro, ao lê-lo, cheguei à conclusão de que já tinha lido aquilo em qualquer parte… Tudo o que aquele autor escrevia não era sobre o passado, nem tão pouco sobre o presente. Era sobre o futuro! E o Toino, na idade em que estava, tinha era de pensar sobre o futuro, que para ele não se apresentava nada risonho! E estes livros davam-lhe a oportunidade de sonhar com o futuro…
Foi o autor que mais me impressionou em toda a minha juventude e, ainda agora, quando penso nele, fico impressionado quanto à visão futurista daquele extraordinário autor e as suas descrições. Nem sequer se pensava nisso e ele descreveu com extraordinário pormenor as viagens “Da Terra à Lua” e “à Roda da Lua”! Não se pensava em voar e ele descreveu “Cinco Semanas em Balão”! Não se pensava no mundo submarino e ele descreveu, com pormenor que impressionou, as “Vinte Mil Léguas Submarinas”. Quem o leu nunca mais esqueceu o Capitão Nemo, construtor e comandante do Nautilus.
Enfim, ler é viver quando não temos a possibilidade de viver, para depois escrever, e os outros lerem…
No entanto Júlio Verne descreveu sem viver. A sua imaginação prodigiosa parece nada ter inventado. Ele via antes de qualquer mortal o fazer. O futuro deu-lhe razão. Praticamente tudo sobre o que ele escreveu se concretizou.
Estou a recordar um dos seus mais extraordinários livros “Miguel Strogoff”. Custou-me a acreditar que tendo ele sido mandado cegar passando-lhe um sabre aquecido ao fogo sobre as vistas, se verificasse, mais tarde, que as lágrimas que ele chorava arrefeceram a lâmina do sabre, o que lhe evitou a cegueira. Este facto consta de um dos comentários que li, e foram vários, que aconteceram à personagem do livro. E estes comentários têm muito poucos anos.

10. Entre sol e chuva, as terras foram todas margeadas


Finalmente, entre sol e chuva, as terras foram todas margeadas e semeadas.
Era um serviço relativamente leve. Espalhavam-se as sementes pela terra, atrelava-se o arado de margear aos bois, e aí íamos nós de um extremo ao outro da terra, voltava-se em sentido contrário tantas vezes quanto as necessárias, até que o terreno ficasse todo margeado. Os regos que separavam as margens ficavam à distância de cerca de um metro uns dos outros. Depois, com um ancinho era cobrir as sementes que tivessem ficado a descoberto, evitando assim que os pardais as comessem! Se o tempo fosse húmido e quente não tardaria um mês que pudéssemos começar a colher erva para o gado.
Agora, enquanto não se arranjava outro trabalho, o tempo ia descansando o físico, a mente ia-se cultivando e até havia tempo para, de vez em quando, ir visitar um amigo que havia adoecido, doença que o obrigava a estar acamado. Conversávamos, jogávamos uma suecada quando calhava, e lá o ia ajudando a passar o tempo.
A chuva parara. Havia possibilidades de o dia seguinte ser um dia de sol. Logo havia a ordem:
— Se amanhã o dia estiver bom, vamos à marinha apanhar mais uma bateira de estrume!
A ideia da cobra veio-me à cabeça e não me deixou nada descansado. Enfim o tempo começava a esfriar e possivelmente as cobras estariam metidas nas suas tocas, protegendo-se do frio. Era esta a minha esperança…
O tempo estava na verdade melhor no dia seguinte e, manhã cedo, lá fomos nós, o pai de gadanha e engaço ao ombro e o Toino com as duas varas, em direção à bateira.
O dia não era de chuva mas a manhã estava fria. Notou-se logo ao meter os pés na lama para alcançar a bateira. Solta esta do moirão, lá vamos nós para Esteiro do Oudinot. Salto para a margem com a cirga na mão, estico-a ponho-a ao ombro, e vá de puxar a bateira. São dois quilómetros de extensão, contra a maré. Chegado ao fim é recolhida a cirga, entro para a bateira, pegamos nas varas e vá de atravessar a cale, sempre com muita atenção, não vá aparecer algum navio que nos atrapalhe a manobra. Chegados ao fundão, vá de “paijar” com as varas como se fossem remos, dado que a cale era muito funda e as varas não atingiam o fundo.
Passámos sem problemas e da outra banda voltámos na empurrar a bateira com as varas, até que chegámos à marinha, amarrámos a bateira e começámos a trabalhar. O pai a gadanhar o estrume e o Toino sempre com o olho à viva (não fosse aparecer outra cobra) ia-o juntando e enfeixando na corda. Quando o molho estava com a quantidade suficiente era amarrado. O Pai puxava a corda de um lado e o Toino do outro, apertavam-no, davam um nó, o pai ajudava a pô-lo na cabeça do Toino, e aí vai ele a correr com o molho de estrume à cabeça, sempre a pensar nalguma cobra…
Este serviço repetia-se vezes sem conta, até que a bateira estivesse carregada. Depois era o regresso pelo Esteiro do Oudinot, o carro dos bois à espera, o descarregar da bateira…
Este serviço era executado dias sem conta, sempre que o tempo o permitisse, até que houvesse estrume suficiente para as camas do gado durante o inverno.
O tempo ia piorando. O vento e as chuvas anunciavam o tempo que aí vinha, a chegada do inverno. Já havia dias de chuva, que permitiam ao Toino ler uns bons pedaços do seu livro, até ser “acordado” do sonho que a leitura lhe provocava, por ordens do pai que dada a ordem continuava na sua leitura:
— Ó Toino vai dar uma gabela de palha aos bois! — Ou —  Dá uma gabela de erva à vaca!
O Toino deixava a leitura e ia confirmar a ordem junto do pai, não que não tivesse ouvido bem, mas para confirmar qual o livro que o pai estava a ler. Punha o olho de lado e ia cumprir a ordem.
De regresso, ainda se atreveu:
— Olha lá ó pai, quantas vezes já leram esse livro…? (era o Mártir do Gólgota)
— Não sei, mas gosto muito dele. Tem aqui uma personagem que me faz pensar… — E continuou — era o cantor da Galileia e ia fazer serenatas a Madalena, a pecadora. Chamava-se Boanerges. Se um dia tiver um neto gostava que lhe dessem esse nome…
E lá continuavam, cada um com a sua leitura, até que da casa do forno se ouviu a vós da mãe:
— É pessoal, vamos à janta que o comer já está na mesa!
Só nessa altura o Toino se lembrou de ter ouvido o meio-dia tocar no sino da igreja. E lá deixaram as leituras e foram para a mesa. O Toino olha para a comida e resmunga:
— Mais uma vez caldo de feijões…
— E é para quem quer! — Responde-lhe a mãe — Se não quiseres vai para a panela e fica para logo à noite. Nesta casa não se estraga nada…
E como naquela casa só se falava o necessário, a solução era comer do que havia e bico calado!
O tempo ia passando, sem o Toino fazer ideia do que aí vinha. Agora era tudo um mar de rosas. Ler, ir ao pasto para os bois, fazer qualquer outro serviço que fosse necessário e ler, ler! Começava a esfriar ainda mais. O vento assobiava por entre os ramos das árvores agora já nuas, sem folhas. O inverno estava a chegar e parece que iria ser de muito frio.
— O futuro o dirá!
Foi a resposta do pai do Toino à pergunta do filho sobre o assunto. Ele, que no verão previa o tempo, agora mostrava uma certa reserva, sobro o inverno que se aproximava. Parecia preocupado!
— Comprámos o moliço dos viveiros da Corte do Paraíso e temos de o apanhar antes do fim de Fevereiro e transporta-lo para as terras. O tempo de o apanhar está a chegar. Comprei o moliço mais dois dos teus tios e domingo vamos combinar quando começamos a apanha-lo! Vai começar uma época de trabalho.
“Com o frio que parece vir aí, deve ser bonito!”, pensa consigo o Toino. Ele que já tinha sentido o frio que a geada provocava nos pés, ao pisar a lama branca de geada. Só não compreendia que, no tempo em que andava na escola primária, quando geava, a sua mãe o obrigava a levar tamancos de sola de madeira, que eram normalmente comprados na feira dos treze, na Vista Alegre. No entanto, mal desaparecia das vistas da mãe, era vê-lo a pegar num tamanco em cada mão, e toca a correr, que para os lados da Escola da Ti Zefa já se ouvia a algazarra da malta a jogar a bola - tudo descalço - e não havia frio que se sentisse. Topada numa pedra sucedia de vez em quando; mas nada que um trapo ou um lenço amarrados no local ferido, logo ali, não resolvesse! Grandes tempos aqueles!
Agora havia que trabalhar, e o que aí vinha não era trabalho “mole”…
Chegou o domingo à noite e foi-lhe dado conhecimento da resolução da apanha do moliço.
— Mas pai — diz-lhe o Toino — estamos em Janeiro e o tempo está tão frio! Podíamos ir um pouco mais tarde…
— O frio não faz mal nenhum, cura… E o trabalho aquece!
Foi a resposta…
“Este homem tem sempre uma resposta!”, resmungou o Toino, pensando já no frio que iria passar…


11. Que vida esta!


Começava mais uma época de trabalhos, que era exclusiva dos marnotos da Gafanha já que, os de Aveiro, não tendo terras, se limitavam a consumir o tempo, visitando de vez em quando a salina, acautelando alguma “cambeia” que as marés vivas tenham provocado, ou passeando debaixo dos arcos do Hotel Arcada, local soalheiro e abrigado dos ventos do nordeste, que no inverno enregelavam o corpo até aos ossos…
Enfim, cada qual nasce para o que nasce!
E para o Toino não era nada bom ser filho de lavrador, com terras!
E lá foram na segunda-feira seguinte para os viveiros da “Corte do Paraíso” começar com a apanha do moliço. O pai do Toino com um ancinho e a gadanha ao ombro, o Toino com um ancinho, montam cada um na sua bicicleta e toca a andar em direção ao… “Paraíso”??!!!
Atravessaram a ponte de madeira que liga á estrada que dá a Aveiro e aí foram a caminho dos “moinhos”, onde se localizava o Paraíso. O vento norte corria de mansinho, mas frio como o gelo. As orelhas e as mãos sentiam-no bem. Pior seria quando tivessem, ao chegar ao viveiro, de tirar as calças, ficar em cuecas e entrar na lama. “Enfim, veremos…”, ia cogitando o Toino, tentando meter uma mão no bolso e conduzindo a bicicleta sem mãos.
Chegaram. Calças fora, cuecas arregaçadas e toca de descer para o viveiro.
— É pá! — diz o pai do Toino para um cunhado —  Está mesmo frio… Toca a gadanhar para aquecer. Enquanto nós cortamos o moliço, o Toino com o ancinho vai-o juntando em montes pequenos para depois serem “zurrados” para junto da estrada, d´onde mais tarde serão carregados para os carros de bois, que o conduzirão às terras, na Gafanha.
Com o correr do dia, e como o céu se encontrava límpido, o sol ia aquecendo o ar ambiente, mas não a lama onde se enterravam os trabalhadores. O corpo com o trabalho, aquecia. Mas as pernas e os pés, valha-lhes Deus, nem os sentiam…
Lá para o meio da tarde o sol começou a descer no horizonte, para os lados do mar. A temperatura começou também a descer, o ar ambiente ia ficando cego, uma espécie de pó finíssimo pairava no ar. Para o fim da tarde o ar já enregelava os ossos!
— Mau, mau! — diz o cunhado Zé — Se isto assim continua, amanhã vai ser o bom e o bonito! (Querendo com isto dizer que seria ainda um dia de mais frio).
— Esperemos que o tempo não encubra, porque então vai ser frio de rachar…
A noite ia chegando e resolveram regressar a casa.
— Por hoje chega de trabalho — diz o pai do Tónio, que era o mais velho dos cunhados —, vamos até casa, que amanhã também é dia.
Lavaram a lama das pernas e dos pés, enfiam as calças e aí vão de abalada até à Gafanha.
“Porca de vida” — ia pensando o Tónio enquanto pedalava em destina à Gafanha. “Isto não é vida para mim. Isto não pode continuar, tenho de pensar noutro modo de vida. Não se passa fome, mas o trabalho é de escravo! Lá que o pai e os tios aceitem este modo de vida certamente por não terem alternativa, é lá com eles. Eu é que tenho, não posso aguentar este modo de vida. Não sei o que ganho. Só sei que trabalho que nem um escravo, embora os meus catorze anos!”
Chegados à Gafanha, cada um foi para sua casa, tendo combinado que no dia seguinte estariam nos viveiros lá para as oito horas da manhã!
“Oito da manhã no mês de Janeiro é ainda noite! Que Deus me ajude para eu poder aguentar… Tenho de me desenrascar. Tenho de arranjar outro modo de vida” — pensa o Toino. E naquela noite o Toino foi pensando no seu futuro.
Trabalhar com o pai, era demasiado castigo para o corpo e para o espírito. Disso tinha a experiência necessária. Isso estava fora de questão… Ir para uma oficina, como aprendiz de qualquer coisa? Talvez, mas o caso não se concretizou. Falta de vontade dos pais ou de “cunhas”… Imigrar para qualquer parte? Na altura era a Venezuela que “estava a dar”… Havia ainda Angola onde estava a ser acabada a construção de uma aldeia para emigrantes, no Norte, na zona do café, até já lhe tinham dado nome: era São José de Encoje.
Toino escreveu para o Ministério do Ultramar pedindo informações e também para a Embaixada da Venezuela. E aguardou!
Entretanto o dia seguinte tinha chegado. Levantaram-se, pai e filho, foram à bomba lavar a cara. A mãe já se tinha levantado e acabava de por o café na mesa, onde fez sopas de broa, que com o café quente souberam bem, já que a madrugada se encontrava extremamente fria. O sol ainda não tinha nascido.
Enquanto preparavam as bicicletas e as alfaias para se dirigirem aos viveiros do Paraíso (até parece mentira nós irmos para o Paraíso com aquela temperatura), o Toino diz ao pai:
— Espera um pouco que eu já venho.
— Onde vais? Não te demores…
Eu saí ao portão e dirigi-me à pia de dar água às vacas do vizinho Sarabando. Sabia que essa pia tem sempre água e tive curiosidade de saber como estava, com aquela temperatura. Tentei quebrar o gelo em que a água se tinha transformado e não consegui. Regressei, pensando como estaria a do viveiro…
— Vamos embora, que se faz tarde! — manda o pai, montando na bicicleta.
Também montei na minha e fomos andando, enquanto me dirigia ao meu pai, perguntando:
— A água do viveiro também estará gelada?
— Esteja que não esteja, temos de trabalhar…
Era de ferro este homem, só pele, ossos e nervos. Era só trabalhar. Também nunca o vi fazer outra coisa!
Chegados, era o que se esperava... O sol começava a raiar e o seu brilho mostrava um viveiro com uma superfície brilhando. Parecia um espelho sobre a água completamente gelada. O Toino encolheu-se todo pensando no frio que devia fazer…
— Vá, toca de tirar as calças, arregaçar as cuecas que temos de ir “zurrar” o moliço p´ra beira da estrada. E nada de se “dar ao frio”, que então é pior…
Todos cumpriram a ordem e eis três homens e um garoto de cuecas arregaçadas a entrar na água e a começar o serviço.
O pai do Toino foi o primeiro, para dar o exemplo. Encosta o ancinho ao primeiro monte de moliço, encosta a ponta do cabo no ombro e empurra!
— Porra! — diz, quando não conseguiu mexer o monte — Parece que está colado ao chão. O gelo colou-o à lama.
E foram precisos dois homens para descolar cada monte. Depois era arrastá-los, embora com muito esforço. Iam quebrando o gelo vagarosamente, e lá se chegava junto da estrada. E assim andámos uns tempos neste serviço.
Nisto ouve-se vindo dos lados da Gafanha vozeria de gente nova. Eram estudantes da Gafanha que se dirigiam ao Liceu e Escola Comercial, em Aveiro. Pareciam pardais à solta! Bem agasalhados, bem calçados. E eu ali… Um tio do Toino, que tinha uma certa propensão para chatear os outros, diz-lhe, enquanto ia empurrando o seu monte de moliço:
— Olha, olha Toino… Sabes quem vai ali? São os teus irmãos… Tu não quiseste estudar e agora andas aqui…
Senti vontade de lhe dar com o ancinho nas costas, mas fiquei-me pela intenção…
Continuar a empurrar os montes de moliço que, à medida que avançavam iam deixando um sulco aberto por entre o gelo, o que facilitava os que viriam a seguir, era a solução.
Os que vinham atrás faziam menos esforço a fazer avançar o moliço, mas tinham de ter mais cuidado com o local onde punham os pés, pois se não fosse nos sulcos deixados pelo montes de moliço, corriam o perigo de o gelo duro lhes cortar as pernas enregeladas.
“Que vida esta!” Ia falando para si o Toino… Como é que o pai e os tios iam trabalhando sem uma lamentação sequer?! Ia-os observando, tentando imita-los. O cabo do ancinho apoiado no ombro, os pés “fincados” na lama, o tronco do corpo quase na horizontal para vencer a resistência dos montes de moliço. Ele lá ia andando conforme as suas forças. Era difícil pela sua pouca força, e doloroso pelo frio que fazia. Mas tinha de andar…

12. E a estudantada lá desapareceu de vista para os lados de Aveiro


E a estudantada lá desapareceu de vista para os lados de Aveiro. Teriam frio na cara mas não no resto do corpo bem agasalhado e com as mãos enluvadas. E o Toino ia trabalhando e pensando: “E eu aqui…”
Enfim, terminou a apanha do moliço. Agora era vir com o carro dos bois e transporta-lo para as terras. Seria no dia seguinte que começariam com esse serviço. Assim foi.
— Como os bois não andam tão depressa como as bicicletas, amanhã temos de levantar mais cedo, para ao nascer do sol estarmos lá! — avisa o pai do Toino.
Não havia safa. Aqueles homens sempre levaram aquela vida, parece que nada os incomodava. Os três cunhados eram só pele e osso — os três — mas a sua resistência parecia não ter fim. E o Toino tinha que aprender a resistir…
No dia seguinte, era ainda madrugada, aparece a minha mãe a chamar-me:
— Toino “alabanta-te” que o teu pai já está quase pronto e vai tirar os bois para pôr ao carro.
O Toino ainda reclama que é de noite, mas a mãe tira-lhe os cobertores de cima e obriga-o a levantar-se. Almoçou rapidamente que o pai já o chamava:
— Vamos à vida que os bois já estão ao carro.


Vesti uma samarra — que o tempo estava frio — e sentei-me no carro tangendo os bois, avançando lentamente pela estrada de ia dar aos viveiros. Chegámos à Cale da Vila era ainda noite. Ao passar junto à casa do Sr. Cunha, estranhei ver luz numa varanda da casa que dava para a rua. Olhei com mais atenção e vi o dono da casa ajeitando a sua gravata no pescoço, ao mesmo tempo que olhava o céu, tentando imaginar se iria estar um bom dia de seca (ele era um armador de navios da pesca do bacalhau e tinha também uma seca de bacalhau). E eu que pensava que as pessoas ricas se levantavam quando quisessem (normalmente tarde). Afinal não era como eu imaginava…
Seguimos o nosso caminho, chegámos aos viveiros e começámos a carregar os carros com o moliço que se encontrava à beira da estrada, o que não levou muito tempo, pois com o frio que fazia, quanto mais depressa trabalhássemos mais o corpo aquecia, e não sentíamos tanto a “gerpa” que nos atravessava a roupa e parecia querer colar-se à nossa carne! Finalmente lá carregámos os dois carros, amarrámos as sebes com cordas e partimos de regresso rumo à terra de um dos tios, a quem o moliço desse dia se destinava. Ao passar pela ponte de madeira que liga a Gafanha a Aveiro, com o peso dos carros carregados de moliço, esta balançava que metia medo! Finalmente ultrapassada entrámos no asfalto. À direita ficava a casa do cantoneiro Sr. Sousa, com a velha figueira ao lado. Fiquei mais descansado. Agora era mais meia hora e teríamos os carros descarregados na terra. Depois era ir para casa meter os bois no curral, dar-lhe alimentação e aquela manhã de trabalho estaria terminada.
Depois…
— Vamos jantar que de tarde temos de ia “zurrar” o resto do moliço que está apanhado, para amanhã o irmos buscar para a terra do Tio Zé — diz o pai do Toino.
Não era costume, mas até deu uma explicação:
— As manhãs estão muito frias, vamos apanhar e zurrar moliço de tarde e aproveitamos as manhãs geladas para o transportar. Sempre se pode trazer mais “roipa bestida” e não se sente tanto frio…
(E eu que pensava que “eles” não sentiam frio…)
Enfim, este período infeliz para o Tónio — o levantar cedo, o frio, o gelo em que se transformava a água dos viveiros, e especialmente a passagem da malta para o estudo a caminho de Aveiro — também havia de acabar! A todos estes tormentos se juntava o gozo dos seus tios “Não quiseste estudar (o que não era verdade) agora o teu corpo é que paga…”
Finalmente terminou a apanha do moliço. O tempo frio parece ir acabar. Viriam as chuvas e com elas, o tempo para ler mais uns livros. Oxalá as chuvas demorassem a ir embora. O tempo aqueceria um bocado e a temperatura seria menos desagradável.
Num destes dias, ao chegar a casa, depois de ter ido apanhar um molho de erva para o gado, diz-lhe a mãe do Toino:
— Chegou uma carta no correio. Penso que é para ti. Toma!
E entregou-lhe a carta. Pelo envelope logo soube donde vinha: Embaixada da Venezuela. Abriu-a rapidamente e leu: para emigrar para a Venezuela era necessário ter lá um familiar, ou outra pessoa que se responsabilizasse pela sua estadia, e lhe enviasse uma carta de chamada… “Para aqui, estou arrumado!” Pensou o Toino olhando para a carta e para sua mãe que curiosa queria saber o que dizia a carta. Contei-lhe o que se passava e ela repreendeu-me:
— Pensas que tens idade para andares por esse mundo fora sozinho? Apanha é juízo…
Bem, ainda há a possibilidade de Angola. A resposta havia de chegar! Eu até tinha lido numa revista que andavam a arranjar pessoal para a tal aldeia de São José de Encoje… Só que pretendiam gente mais madura e pessoal que fosse casado. E eu era novo e solteiro… Tudo contra mim, mas a esperança era a última coisa a morrer. Há que esperar!
E enquanto ia esperando, ia lendo. Qualquer espaço de tempo era por mim aproveitado para ler. Li quase toda a coleção de Júlio Verne. Quem corre por gosto não cansa…
Já ia pondo os olhos para a “Bíblia Sagrada”, obra de quatro grandes volumes. Cada folha era escrita em duas línguas: a coluna da esquerda em português e a da direita em latim, ”iluminadas” com desenhos coloridos, feitos à mão. Verdadeiras obras de arte. Aquela Bíblia tinha com certeza mais de cem anos! Comecei a ler aquela maravilha. Primeiro observava os desenhos longamente… No texto seguinte estava escrito tudo o que eu imaginara ao analisar os desenhos. Assim era mais fácil memorizar os que tinha observado e lido. Levava mais tempo, mas valia a pena.
Ainda me recordo que quando uma vez o meu pai passou e eu estava embebido na leitura, ele me ter chamada a atenção:
— Quando tiveres dificuldade em compreender alguma coisa do que estás a ler vais ao último volume, que está lá explicada toda a interpretação que a gente não compreender da Bíblia…
Fiquei admirado e pensei comigo: “Será que é tão difícil compreender este livro, que deve ter sido escrito para toda a gente compreender?!” Fui andando com a leitura e, algumas vezes, recorria ao tal livro, um volume com muito menos páginas do que os outros.
Mesmo assim, continuei com a leitura. Era interessante, embora já conhecesse parte do que descrevia, pelo que aprendi na “catequese” mas sem qualquer alteração… “Todos os factos ali descritos narrando coisas passadas há milénios, não haviam sofrido alterações? As mentalidades não sofreram evolução? Será que a ciência não evoluiu de modo a poder explicar de outro modo coisas que se passaram há milénios?” E a dúvida começou a tomar forma na minha cabeça. Tinha de haver explicação diferente para muitos dos factos narrados na Bíblia, à luz do saber atual. E eu havia de encontrar as diferenças e a sua razão!
E continuei com a minha leitura, até que cheguei à parte que tratava da conceção e nascimento de Cristo, a sua vida até à sua morte e ressurreição. Já da primeira vez que tinha lido estas coisas me ficaram algumas dúvidas. Hoje era já tarde e resolvi deixar a leitura e ir pensando no caso. E assim fiz. Arrumei o livro e fui dar uma volta até ao quintal para espairecer. A cabeça pesava-me com aquelas ideias… “Porque não era possível, naquela altura, uma mulher ter um filho sem pai, pois seria considerada uma prostituta e seria apedrejada na praça pública, arranjou-se-lhe um marido chamado José, mas que não poderia ter relações sexuais com Maria (seria pecado), tendo-se esquecido o narrador da História de que o Criador ao fazer o homem e a mulher lhes ter dito: “Crescei e multiplicai-vos!” E isso não seria possível, mesmo à luz da razão da época, sem que houvesse uma relação sexual entre homem e mulher… Mas Maria, está escrito na Bíblia, concebeu e deu à luz um filho, sendo virgem e continuando a ser virgem depois de dar à luz…”
O narrador tinha de arranjar uma explicação para o facto! E arranjou: “o Criador enviou à Terra (não somos os únicos seres existentes neste mundo) um emissário, o Espírito Santo, e Maria concebeu por Sua obra e graça. Depois teve um filho a que chamaram Jesus, ficando sempre virgem!”
Esta explicação era, ao tempo, a única aceitável! Ao Criador tudo era possível…
“Mas, e agora? Eu vou ter de continuar a aceitar essas ideias? Não haverá outras respostas? “Comer e calar”, como era uso dizer-se cá em casa? Não. Eu que tenho sofrido como poucos as agruras da vida, tanto morais como materiais e físicas, não as aceitarei. E hei-de descobrir uma razão à luz da ciência atual e o porquê - não direi da mentira da Bíblia — mas da razão de o facto ter sido explicado como o foi. Ah...! “O Espírito Santo desceu à terra e veio num carro de fogo”… Hoje a esse carro de fogo chamaríamos “foguetão” (na altura não existiam…) Desceu sobre Maria e ela concebeu um filho a que deram o nome de Jesus… Naquele tempo como seria possível explicar a inseminação artificial? Só um louco tentaria, mas sem resultado, pois essa prática ainda não existia e ele correria o risco de ser considerado mesmo louco, ele que com as explicações dadas, mostrou ser uma pessoa inteligente. Atualmente já se pratica… Maria deu à luz, sendo virgem e continuando virgem. Mas como era possível explicar isso na altura?! Mulher que concebia, e mais, dava à luz, não poderia continuar virgem.” Mais uma vez o narrador da bíblia teve de utilizar a inteligência: “Maria concebeu, deu à luz, e continuou virgem, por obra e graça do Espírito Santo!” E não havia, na altura, mais explicações a dar! A fé explicaria as dúvidas. Hoje não seria assim, porque a ciência progrediu. A conceção já foi indicada como seria explicada hoje. Quanto ao nascimento seria explicado como se faz hoje, terá havido uma cesariana, pelo que Maria continuou virgem…”

13. Outras leituras


Outro caso que nunca me pareceu bem explicado foi o facto de José (marido, companheiro?) de Maria. Continuando as minhas leituras não encontrei resposta para esta pergunta que me fazia! Um dia ao ler a história de uma mulher que foi apedrejada por ter engravidado sendo solteira (isto no tempo de Jesus, o que ainda agora se verifica para aquelas bandas) levou-me a pensar que José terá sido um simples companheiro de Maria, para lhe evitar dissabores e ajudar no sustento da casa já que nem todos os judeus acreditavam na história do Espírito Santo.
Fiquei-me com estas minhas explicações, meditando se haveria outras mais plausíveis. Se as houvesse, viria a descobri-las. E a leitura da bíblia continuou. Eu não poderia perder tempo se quisesse acabar a sua leitura.
Entretanto mudei de assunto — quero dizer, de leitura — para outra que não fosse tão maçuda. Eram só desgraças e pecados.

Fui à estante e escolhi um livro de Júlio Verne, autor que escrevia sobre o futuro. Peguei em “Cinco Semanas em Balão” e eis-me a voar pelos ares, conforme narração do autor! Era uma leitura agradável como, normalmente, todas as de sua autoria. Dois dias depois (e parte de duas noites, que de noite também se lê!) tinha eu passado cinco semanas num balão, juntamente com a imaginação extraordinária do escritor. Era leitura fácil, parecia-me intuitiva e portanto era aceite pala minha imaginação, e terminou rapidamente.
Mais uma ida à marinha apanhar uma bateira de estrume, que o tempo tinha melhorado e era necessário aproveitar o bom tempo, e os dias iam passando…
 Até que um dia ao chegar a casa, a mãe do Toino lhe disse:
—  Hoje o correio trouxe uma carta para ti.
—  Uma carta? Onde está ela?
—  Em cima da mesa da casa do forno…
Curiosamente, dirigi-me ao local indicado e peguei na carta, mirando-a.
—  Oh!
—  Que é? —  pergunta-lhe a mãe.
—  É com certeza a resposta ao meu pedido de informação, sobre a minha ida para Angola.
—  Vê lá menino onde te andas a meter…  — responde a mãe apreensiva!
Abri a carta rapidamente e li-a. Ao terminar a leitura senti um certo desconforto, que minha mãe notou.
—  Que foi…?
—  Afinal, é tudo a mesma coisa. Para ir para Angola também é preciso carta de chamada, como para a Venezuela. Mas Angola é uma Província Ultramarina como me ensinaram na escola ou é um país estrangeiro como a Venezuela? —  desabafa o Toino, desanimado…
— Graças a Deus!
Ouço minha mãe dizer por entre dentes, ao mesmo tempo que se afastava do local!
As mães são mesmo assim. É preciso é ter os filhos junto às suas saias, embora isso possa prejudica-los, como era o caso. Mas eu não posso continuar com esta vida. Tenho de a resolver!
Ouvi dizer a uns colegas que a Escola Industrial e Comercial de Aveiro iria começar a ministrar cursos noturnos para trabalhadores e resolvi inscrever-me no curso comercial. Assim fiz, e na devida data fui inscrever-me. Ficava na altura a Escola instalada no antigo Liceu José Estêvão, junto ao Tribunal, hoje Câmara Municipal. Era quase à entrada da cidade para quem vem da Gafanha, o que nos convinha, pois não era necessário atravessa-la.
No primeiro dia de aulas, reparei que havia muitos alunos inscritos, especialmente no curso industrial. Eram trabalhadores das oficinas instaladas na Gafanha, normalmente nas das empresas da pesca de bacalhau especialmente na Empresa de Pesca de Aveiro que, tendo muitos navios arrastões, ocupava muito pessoal próprio nas reparações desses navios - serralheiros mecânicos e civis, carpinteiros e outras especialidades. Alguns desses alunos, inscritos na JOC (Juventude Operária Católica) mais tarde vieram a inscrever-se em concursos internacionais das suas especialidades, onde obtiveram excelentes classificações!
Começámos a conhecer-nos mutuamente. Éramos cerca de uma dúzia, matriculados no Comercio e na Industria. Havia horários diferentes, pelo que não nos juntávamos todos os dias. O único meio de transporte era a bicicleta, que cada qual utilizava individualmente. Éramos gente nova, cheia de vigor e enquanto fazíamos o caminho íamos conversando e brincando, tornando aquelas viagens agradáveis. Mais tarde, quando chegasse o inverno, outro galo cantaria… As chuvas, os ventos por vezes ciclónicos, iriam por à prova a nossa resistência às intempéries e ao estudo. É que não havia outro meio de transporte...
Houve até um colega que, dadas as nossas brincadeiras por vezes serem autênticas corridas de bicicleta, se lembrou de apelidar a malta de “Os Águias de Alpiarça”, pois à data existia um clube de ciclismo com esse nome!
Naquele dia de Novembro a tarde aproximava-se do fim. O céu estava limpo, as estrelas brilhavam. Mas o vento nordeste rugia e a mãe do Toino aconselhou-o a faltar às aulas, depois de uma rajada de vento mais forte ter feito entrar pela porta da casa do forno um resto de folhas de árvore que ainda se encontravam amontoadas no aido!
—  Menino! (para as mães os filhos são sempre meninos) Se fosse a ti, hoje faltava às aulas. O tempo está mau. Está muito vento…
— Não faz mal, mãe! É só vento frio. Se fosse chuva era pior… Responde o Toino.
Pegou na bicicleta e na pasta dos livros, e aí vai ele em direção a Aveiro. Mal chegou à casa da “Ti Sarda” e rumando para a rua principal aí vem o vento forte, de frente, obrigando-o por vezes a pedalar de pé em cima dos pedais. Mas o caminho foi vencido, embora tivesse chegado à primeira aula mesmo na hora de entrada. No intervalo da primeira aula, notei que afinal ninguém tinha faltado às aulas, muito embora o tempo estivesse muito frio e ventoso. A segunda aula foi de História Universal, disciplina que eu não apreciava muito. Mas o professor, homem sabedor do assunto e com extraordinária dicção, ia dando a aula como se conversasse com os alunos, contando uma história, despertando o nosso interesse sem darmos por isso… E foi assim que eu comecei a gostar da História, especialmente da antiga e que se referia ao Médio Oriente.
Terminadas as aulas, verifiquei que os meus colegas da Industria (como lhe chamávamos) tinham tido feriado na última aula, por falta do professor. Como era o único aluno do Comércio, nessa noite não teria colegas no regresso à Gafanha. Teria de seguir sozinho! Com aquela ventania toda pelas costas, seria uma viagem rápida. Tentei bater o meu próprio recorde de chegar à ponte da Gafanha sem por as mãos no guiador da bicicleta. Já o tinha tentado várias vezes mas a curva das Pirâmides (a noventa graus com inclinação acentuada) não mo tinha permitido… Iniciado o regresso, logo a seguir à ponte, à saída de Aveiro, meti as mãos nos bolsos, e aí vou eu… A velocidade era grande, tive de regular o farol da bicicleta para que as duas lâmpadas ficassem acesas, pois dada a velocidade, só uma acesa provavelmente iria fundir-se! Agora aproximava-se a curva da Pirâmides. Não poderia diminuir a velocidade e tinha dar a inclinação necessária ao corpo e à bicicleta para não me despistar. Olho para a frente e para a esquerda, não vem nenhuma viatura em sentido contrária. Entro pelo lado esquerdo da curva e saio pelo direito diminuindo assim o ângulo de curva… Desta vez passei!
Tomo o rumo da Gafanha, agora com mais velocidade com o vento mesmo pelas costas. Até à ponte levaria meia dúzia de minutos. Assim foi. Chegado aí tive de ter mais cuidado. A entrada na ponte fazia-se com uma curva também apertada e se falhasse só pararia na água… Havia que abrandar a velocidade, e as mãos que até aí tinham vindo nos bolsos, saíram e seguraram bem no guiador da bicicleta, não fosse o diabo tecê-las! Cheguei à ponte. O “meu” recorde estava batido! Atravessei a ponte, entrei na Gafanha, e agora eram mais dois quilómetros e estava em casa.
Ceei, preparei as lições para o dia seguinte, e fui-me deitar.

14. O tempo já não era quente e estava-se bem na cama


Era Outono, o tempo já não era quente e estava-se bem na cama. Nessa noite o tempo estava mesmo frescote! E o tempo ia passando. Passou o Outono, chegou o Inverno.
Era agradável a frequência das aulas. Menos as deslocações, com os ventos fortes acompanhados de chuvas. As roupas impermeáveis que tínhamos de usar dificultavam os movimentos. Para o frio que por vezes fazia, bastava usar roupas mais quentes.
Entretanto chegou o tempo da apanha do moliço, com todos os problemas que acarreta: o frio e o gelo com todas as suas consequências. Mas o Toino estava mais crescido, com mais força, e isso facilitava-lhe a execução do trabalho. Só lhe fazia doer o coração era ver a estudantada passar na estrada, bem agasalhada, passando alegremente a caminho de Aveiro e ele ali atolado na lama, cheio de frio, zurrando (empurrando) os montes de moliço em direção à estrada! Mas este tempo também iria acabar para ele. Para isso, depois de trabalhar, ia estudar, e como quem corre por gosto não cansa, ao dia sucedia-se a noite de estudo, de esperança num futuro melhor.
Passou o inverno, veio a primavera e o verão.
Veio o serviço das marinhas, o mesmo trabalho, as mesmas labutas. Preparar a marinha, “pô-la” a sal quando estiver preparada e depois colher o sal. Os quentes dias do verão com o vento nordeste que assava a pele, ou a fresca nortada que nos aliviava daquele forno, daqueles quentes dias do nordeste, que custavam a passar. Mas iam passando…
Com o verão os dias cresceram. A entrada nas aulas era normalmente as sete horas. Era ainda meio da tarde para o pessoal que trabalhava nas terras, de maneira que nem sempre a mãe do Toino tinha tempo de lhe preparar uma merenda para ele comer antes de ir para a Escola Comercial. Quando isso sucedia, o Toino ao chegar a casa, encontrava em cima da mesa da casa do forno uma moeda de vinte e cinco tostões para levar e comer qual que coisa antes de ir para as aulas. Era sabido: pedalar mais rápido para ter mais uns minutos. Entrava em Aveiro e no segundo quarteirão à direita ficava a loja da “Ti Camila” (à esquerda era um canal da ria). O Toino encostava a bicicleta ao passeio, e vá de entrar.
— Ti Camila! Uma isca dentro de um pão e um copo pequeno de branco, se faz favor! Era a receita! E que bem que me sabia (pela fome ou pela vontade de comer que eu levava!) Dali à Escola era um pulo. Eu não queria faltar à primeira aula que naquele dia era sobre História Universal e o assunto, Médio Oriente. Lá estará o Dr. David Cristo conversando com os seus alunos (era este o seu modo de ensinar) e nós que já éramos uns homenzinhos, gostávamos deste modo do nosso professor: ouvíamos, fazíamos perguntas que nunca ficavam sem resposta, e assim se passava uma hora de aula, sem que déssemos por isso! Rapidamente chegava a hora de tocar a campainha, anunciando um intervalo de dez minutos.
E depois vinha uma aula, e mais outra, e mais outra. Normalmente eram quatro por dia. Cerca das vinte e três horas era o regresso para quem tinha todas as aulas.
E lá vínhamos em bando a caminho da Gafanha, o que nem sempre era pacífico: uma roda que se furava, um raio que partia ou um pneu que, dada a sua idade, rebentava, não eram problemas de maior!
O Toino, dado o seu físico avantajado, pegou na bicicleta avariada ao ombro, montou na sua e “bota para a Gafanha”. Para o Zé, que tinha ficado a pé, havia que arranjar meio de transporte: foram apalpadas todas as rodas dos restantes elementos do grupo. As que se encontravam em melhor estado (mais cheias) eram as da bicicleta do Eduardo, de maneira que foi ele que teve de trazer o Zé no quadro da sua bicicleta. E mais um problema que foi resolvido pelo grupo.
O Tempo ia passando, até que chegou a altura dos exames.
Era verão e o Toino era dispensado do serviço na marinha para poder estudar e rever as matérias que apareceriam nos exames. Nem mesmo assim tinha o tempo totalmente livre para estudar pois era tempo da rega do milho, e a mãe, que andava no meio do milheiral a orientar a rega (fecha aqui a caneja, abre-a mais alem…) não o dispensava de “tomar conta da vaca”, para que ela não parasse de andar à volta do poço e a água corresse normalmente até ao destino que a mãe lhe dava lá longe no meio do milheiral! Para que o animal não visse se estava alguém por perto era-lhe aplicada, no focinho, uma “careta” que, tapando-lhe os olhos, lhe evitava a visão. Então usa-se a técnico do assobio (assobia-se baixinho como se estivesse longe e dá-se uma pequena pancada no animal). Esta técnica é seguida várias vezes, até que a vaca ouve o assobio, pensa que alguém está perto dela, e não para…
Esta técnica era a seguida pelo Toino que, de livro na mão, ia estudando e ouvindo o travão do “engenho” que no seu tac-tac ia dando o ritmo do andamento do animal que rodava à volta do poço…
Ao contar esta técnica a alguns colegas ficou conhecido, em ar de gozo, pelo “Toca à vaca”… Enfim…
Os exames eram feitos e o Toino lá ia passando, com maior ou menor dificuldade. Mas um dia lembrou-se: “por este andar vem aí a tropa e, se eu não tiver o curso completo, vou “as sortes” e assento praça como soldado… E isso, eu não quero…
Eram cinco anos, já não dava tempo! Só havia uma solução: fazer o exame do primeiro ciclo dos liceus, como aluno externo!”
E assim fez. Além, no ano seguinte, dos exames na Comercial, fez o primeiro ciclo dos liceus. Trabalhos a dobrar mas o Toino lá passou! Na altura ficou satisfeito…
Sabia ele que com as habilitações literárias com que ficou, iria para o curso de milicianos. “Nada mau!”  — pensou na altura. Sairia da tropa como Furriel Miliciano. Tudo na altura parecia de acordo com o que tinha programado.
Assentou praça no R.I. nº 10 em Aveiro, fez a recruta, foi para Tavira onde fez o Curso de Sargentos Milicianos no CSM e regressou à unidade de origem como Cabo Miliciano, tendo aí dado uma recruta e participado nas manobras militares que anualmente se realizavam em Santa Margarida. Passou à disponibilidade (peluda).


15. Marinha nunca mais!

Agora teria de arranjar outro emprego. Marinha nunca mais!
Comunicou a sua intenção a amigos, e passados uns tempos foi-lhe oferecido trabalho no escritório de num armazém de mercearias, onde trabalharia até que arranjasse melhor emprego. Foi uma boa experiência pessoal, especialmente pelos contactos com clientes e fornecedores!
Ainda hoje recordo um facto ocorrido quando recebi ordem da gerência da firma para ir fazer um pagamento de fornecimento de feijão a um lavrador local. Era uma quantia avultada naquela época: três mil duzentos e cinquenta escudos. Teria de trazer o dinheiro para minha casa e, á noitinha, iria a sua casa fazer o pagamento, dado que se trabalhava nas terras de sol a sol e não valia a pena ir com o sol no céu porque não encontraria ninguém em casa.
Chegado a casa informei o meu pai da quantia que trazia, a quem se destinava, mas que só à noite poderia ir fazer o pagamento. Recomendou-me cuidado com o dinheiro e que não saísse de casa, não fosse por azar perder alguma nota. E deixei-me ficar por ali até se fazerem horas. Passados uns tempos o meu pai chega-se junto de mim e diz-me baixinho:
— O Ti Zé Maria Branco passou agora com o carro das vacas direito a casa. Deixa-o arrumar o gado, depois vais lá pagar ao homem, mas toma cuidado, ele que conte o dinheiro, não vá o diabo tecê-las…
Assim fiz, e dirigi-me à sua casa era já noite velha. Cheguei, bati à porta “Truz, truz, truz…”
— Quem é? — perguntaram lá de dentro.
— Sou eu, o Toino. O meu patrão…
Então a figura do dono da casa, homem já com uns bons anos contados chega rapidamente junto de mim!
— Fala baixo cas paredes têm oividos. Entra cã gente está a cozelabôla.
Entrei, disse ao que ia e entreguei o dinheiro pedindo que o contasse.
— Não é preciso homem. Tu és filho de gente séria…
Insisti, ele lá contou o dinheiro e verificada a sua exatidão dirigiu-se ao interior da casa onde iria guardar o dinheiro. Eu aguardei.
Só então reparei na dona da casa que, na sua labuta, lá estava na verdade a meter a broa no forno para que este a cozesse.
Entretanto chega o marido.
— Tudo bem Ti Zé Maria? — pergunto.
— Tudo bem, e agradece ao teu patrão ter-me mandado o dinheiro. Assim evitei uma caminhada até ao vosso armazém para ir receber.
Um aperto de mão foi o recibo que ele me passou pela quantia recebida.
Fui para casa aliviado pelo serviço cumprido e pela falta do dinheiro no bolso, cuja responsabilidade tanto me tinha pesado… Chegado, peguei num livro — não num romance, pois agora eram os livros técnicos que mais me interessavam. A contabilidade, especialmente os “lançamentos”. Foi aí que aprendi o princípio básico: “Quem recebe deve, quem entrega tem a haver”. Aquele ou a conta que recebe, deve. Aquele ou a conta que entrega ou paga, tem a haver. Chamaram a isto “partidas dobradas”. Foi esta teoria que me orientou pela vida fora.
Entretanto chega a voz da mãe da casa do forno:
— Pessoal, vamos à ceia que o comer está na mesa…
Todos se juntaram à volta da mesa acomodando-se conforme podiam e toca a comer que já era tarde. Finda a ceia o pessoal dispersou. Uns foram para a cama, outros ainda tinham que passar a vista pelas lições do dia seguinte. Passados uns tempos, a calma naquela casa era absoluta. Fui-me também deitar, descansado.
No dia seguinte, ainda cedo, fui acordado pelo meu pai.
— Levanta-te, que está ali o Ti Zé Maria Branco e quer falar contigo.
Estranhei, mas logo pensei que deveria ser sobre o pagamento do dia anterior. Deve ter ido contar novamente o dinheiro nessa manhã, e alguma nota que lhe caiu no chão, e a conta não estava certa. Levantei-me e fui falar com o homem.
— Bom dia Ti Zé Maria. Então que há?
— Não sei o que se passou. Hoje de manhã fui para contar novamente o dinheiro e não o encontrei. Não sei onde o pus.
— Mas você contou o dinheiro e foi para dentro de casa arrumá-lo, e eu fiquei com a sua esposa que estava a cozer a bola. Você veio e disse-me que estava tudo certo. Até me apertou a mão…
— Eu sei mas agora não sei onde ele está…
— Então vá para casa e procure-o. Não teriam ido os ladrões à sua casa de noite?
— Não me digas isso. Eu meti o dinheiro debaixo do colchão e se alguém lá fosse eu sentia…
— E será que o pôs onde hoje o foi procurar? Que vou eu agora dizer ao meu patrão?
O homem ficou pensativo e disse-me:
— Deixa lá. Eu vou para casa, vou procurar o dinheiro mais descansado e se houver novidade eu venho dizer ao teu pai!
Almocei e enquanto me dirigia ao trabalho ia pensando qual seria a reação do meu patrão ao tomar conhecimento do sucedido. Chegado, contei-lhe o que se havia passado, e ele com todo o traquejo que tinha ganho a lidar com pessoas como este nosso amigo, disse:
— Tenho a certeza de que ele depois de contar o dinheiro e quando foi para dentro de casa, o foi esconder debaixo do colchão. Hoje ao querer contá-lo de novo o foi procurar noutro sítio, embora debaixo do colchão, mas não onde o tinha guardado. Vais ver que quando chegares a casa para comer, ele lá estará à tua espera a dizer que o dinheiro apareceu!
— Oxalá! — Respondi, preocupado com o que se tinha passado, embora tivesse a minha consciência tranquila!
E o tempo parecia que não mais querer passar! Ao notar a minha impaciência, o patrão diz-me:
— Com o nervoso que estás, ainda começas a enganar-te nas contas e depois é pior! Quando entenderes vai-te embora e só vens depois de comer, que de certeza já vens mais descansado…
Nesse dia saí mais cedo uma hora.
Ao abrir a aldraba do portão entrei em casa, e deparei com o Ti Zé Maria a conversar com o meu pai. Ao reparar em mim, dirigiu-se a mim dizendo:
— Desculpa o engano que houve.
— Então o que se passou? — perguntei, já mais aliviado!
— Deixa lá. Quando fui arrumar o dinheiro, pensei que o pus debaixo do colchão, mas como ele estava roto, meti-o dentro do colchão. Só quando mais tarde a minha Maria, foi fazer a cama reparou no colchão roto meteu a mão e foi lá que eu tinha metido o dinheiro, sem dar por isso.
— Valha-me Deus! Felizmente que está tudo resolvido. Ele há cada coisa…!
E lá se foi o Ti Zé Maria embora, nos seus vagares, mãos atrás das costas, ligeiramente inclinado para a frente, como era hábito nas pessoas da sua avançada idade.
Almocei descansado e sai de casa a horas de ir tomar um café ao “Briol” e seguir para o trabalho de modo a chegar lá antes das duas horas, que era a hora de entrada ao serviço, da parte da tarde. O meu patrão recebeu-me com um sorriso comprometido…
— Então como foram as coisas com o Ti Zé Maria?
Contei-lhe o que se tinha passado, que quando cheguei a casa o tinha encontrado a conversar, descansado, com o meu pai, e a explicação que me deu. Aí também ele respirou fundo… Viu-se que também ele estava preocupado, e disse:
— Foi o que eu te tinha dito. Estes “antigos” são assim. O cofre mais seguro para eles é o colchão, pois dormem sobre ele. E de dia ninguém se atreve e entrar em casa, dado que todos os vizinhos se conhecem muito bem e, se algum estranho fosse visto a entrar na casa de um vizinho, não sairia de lá com muita saúde. A gadanha, que com a sua lâmina afiada, tanto serve para cortar erva e junco, como arma de defesa… Ou a enxada, que tanto serve para cavar na terra, como nas costas do estranho, pondo-o a cavar…
Este trocadilho, que achei estranho vindo de quem vinha, deixou-me bem-disposto, e dei início ao trabalho que teria de executar nesse dia. Entrei no escritório, dirigi-me à secretária e abri a gaveta onde no dia anterior tinha deixado uma série de faturas de fornecedores que teria de conferir.
No entanto fazer do colchão da cama, cofre, esta não lembraria ao diabo… E não me saía da cabeça… Ao chegar a casa ainda fui confirmar junto do meu pai, se esse era o hábito das pessoas - esconder o dinheiro no colchão!
—  Cada um guarda-o onde pensa que está melhor guardado!
Foi uma resposta que me deixou dúvidas. “Será que o meu pai faz o mesmo?!“ pensei. Bem, aquele assunto estava resolvido. A vida tinha de continuar e deixámos de pensar naquilo. Amanhã era novo dia.
Passaram-se uns tempos naquele patrão, onde ia aprendendo mas sem ganhar grande coisa, até que, sem eu pensar em tal, me surgiu nova oportunidade. Uma noite regressava a casa vindo do namoro, assobiando alegremente, quando ouço uma voz:
— António, para aí que preciso de falar contigo!
Parei e aproximei-me de quem havia chamado por mim. Só então reconheci que era um Gerente da Cooperativa Elétrica lá do sítio, pessoa minha conhecida, pois frequentava o mesmo café que eu, que me interrogou:
— Precisamos de mais um empregado lá na Cooperativa. Estás interessado no lugar?
— Depende… Quanto é que me pagam?
— Com certeza pagamos-te mais do que aquilo que estás a ganhar! Passa amanhã de tarde lá na Cooperativa, que é quando eu lá estou, e falamos sobre isso.
— OK.
No dia seguinte falei com o meu patrão, pedi dispensa da parte da tarde, dizendo-lhe onde ia, e para que efeito.
— Trata da tua vida. Eles podem pagar-te melhor do que eu, e se assim for não olhes para trás. Avisa­-me com tempo para eu arranjar um substituto.
Assim fiz e, depois da entrevista, o lugar foi-me oferecido (como o tempo passa! Agora é necessário andar a pedir trabalho e, se se encontra, é preciso uma boa “cunha”, se não nada feito).
Começou assim o Toino uma nova especialidade. A Cooperativa que distribuía eletricidade aos seus sócios iria alterar a distribuição, sendo o consumo pago por escalões, de modo a que quem mais gastava, mais pagaria. Para tal havia uma série de parâmetros a considerar, entre os quais o número de divisões que tinha cada habitação. Logo houve que visitar todas as habitações que tinham eletricidade, a fim de ser registado o número de divisões de cada habitação. Trabalho moroso executado pelo Toino e um outro colega. Levou o seu tempo, já que naquela data havia na Gafanha da Nazaré, cerca de mil residências com instalação elétrica.
A vida agora corria melhor. Ganhava-se pouco (é sempre pouco) mas o esforço era agora mais mental do que físico. Mesmo assim, era uma vida agradável, os gastos — como sempre — de acordo com os ganhos, deixando sempre uma pequena reserva, para o que desse e viesse…
Um dia o Toino, que passeava na festa da freguesia com um amigo, notou num grupo de “moças” que quando passavam por nós se metiam connosco com ar de gozo, e reparou numa, que lhe despertou a atenção, por ser jovem e bonita. Meteu conversa e o namoro começou nesse dia. Ela tinha menos uns três anos do que o Toino mas pareciam talhados um para o outro. Tanto assim que uns tempos depois resolveram casar, logo após o Toino terminar o serviço militar e passar à “peluda” (reserva).
Passado este tempo, foi então resolvida a data do casamento — Julho de 1960. Começou a tratar-se da boda que, na altura, era feita na casa de um dos noivos por ser mais económica e onde todos os membros das duas famílias ajudam. Tudo preparado para meados do mês…
Mas, entretanto, chega a casa do Toino uma notificação da tropa, para se apresentar no R.I.10 em Aveiro, para seguir para Santa Margarida, onde iria tomar parte nas “manobras” militares… O serviço militar começava a atrapalhar a minha vida. Assim, teve de ser atrasada a data do casamento, e lá vai o Toino para Santa Margarida, novamente pegar em armas.
E lá foram passados quinze dias, dormindo e vegetando dentro de tendas de campanha grandes, redondas. Estávamos no mês de Julho e o calor dentro das tendas era abrasador durante o dia. Felizmente que durante o dia havia exercícios militares — ordem unida, crosses e outros exercícios — que nos mantinham fora das tendas. Durante a noite, quando o cansaço não era muito, e a temperatura baixava, eu e um dos meus colegas de tenda (éramos oito) alguns dos quais tinham a mania do desporto, especialmente da luta greco-romana, entretinham-se a praticar esse desporto, que, praticado de acordo com as regras, não provocava mazelas corporais de monta. Os outros entretinham-se como assistência…
O meu adversário preferido era o colega Simões Dias, que tinha um físico proporcional ao meu. Lutava-se um bocado e depois terminava-se a luta sem que houvesse vencido ou vencedor!
E assim se passava o tempo na tropa. Pura perda de tempo. Não sei para que nos serviriam aqueles exercícios, a nós que não éramos profissionais da tropa e na classe dos vinte anos, o que nos obrigavam a fazer era feito todos os dias na vida civil, com exceção daquilo a que chamavam “ordem unida” — mas esta era só para vista e, portanto dispensável, em minha opinião!
Mas quem manda pode, e quem sou eu para, especialmente na tropa ter opinião?! É cumprir e bico calado, caso contrário lá vem o castigo - um reforço, um serviço de plantão às sanitas (só para rebaixar a moral do visado) ou o corte de um fim de semana — eram os mais vulgares. Maldita tropa, pois basta um distintivo em cima do ombro (galões ou até umas simples divisas) e fazem o que lhes dá na real gana. Se quiseres queixar-te do agressor a um superior, terás de pedir autorização a este - coisa que normalmente não era concedida! Coisa da tropa, como disse!
E o tempo de manobras ia passando. Manobras com pessoal de infantaria, que eram mais económicas.
Houve também um exercício com carros de combate. Para mim eram um terror. Avançar ao lado de um “Paton” que pesava quarenta toneladas, com todo aquele ruído das lagartas, logo ao alvorecer, pensando que se uma besta daquelas mudava inopinadamente de direção… Era necessário muito cuidado e olho alerta!
Tanto trabalho, tanta despesa, só por fazermos parte da NATO, organização que nunca nos ajudou e sempre se serviu das nossas posições no planeta em seu proveito. Éramos um grande país — do Minho a Timor — mas esquecemos os ventos da história… Nós, que durante séculos tínhamos feito esses ventos soprar a nosso favor, esquecemo-nos das riquezas que tínhamos, espalhadas por vários continentes, pelo mundo. Nós, um país pequeno mas de grandes feitos, que começou a ser olhado pelas grandes potências europeias, que tinham já sido expulsas das suas possessões, pelo modo como trataram as populações autóctones pouco de acordo com os direitos humanos.
Até os grandes Estados Unidos da América, começaram a olhar-nos de revés. Eles que são donos de um imenso território - porque exterminaram os nativos até quase acabarem com eles, deixando apenas meia dúzia, que mantém em reservas, como animais selvagens, para deleite dos outros, os que se consideram verdadeiramente americanos!
Onde estão os peles-vermelhas e outras raças nativas? Foram passados pelas armas, uns, e outros morreram por moléstias importadas com os emigrantes doentes, tal como a peste e outras, a que os autóctones não resistiram.
E Portugal continuava lá de pedra e cal…
Faz-me isto recordar a primeira intervenção de Churchill no Parlamento Inglês.
Terminada a sessão, pergunta a um amigo de seu pai, também ele membro de parlamento, sobre a sua atuação.
— Então, que tal?
— Mau, muito, mau. Foi a resposta.
— Mas…
— Para a primeira vez que falaste no Parlamento foste brilhante.
— …
— Foste de tal maneira brilhante, que os teus pares e adversários políticos nunca te perdoarão. Por isso o teu brilhantismo foi muito mau para o teu futuro político…
Portugal foi brilhante com a descoberta de novos mundos. Depois ficou orgulhosamente só.
Havia uma solução escrita por um dos mais brilhantes militares que lutaram no Ultramar em “Portugal e o Futuro”. Mas os brilhantes “Capitães de Abril” não o admitiram. Os Oficiais Milicianos estavam a ser promovidos e a passar-lhes à frente. E Isso os Capitães de Abril, não podiam admitir. E fizeram o 25 de Abril…


Ângelo Ribau Teixeira, junho de 2012


NOTAS: A numeração dos 15 conteúdos não tem qualquer significado. A publicação estava dependente do meu tempo disponível. 

Este meu blogue ficará disponível apenas para consulta

Por razões compreensíveis e próprias da minha idade, este meu blogue vai continuar disponível para consulta, mas não será atualizado. Contin...